domingo, 20 de novembro de 2016

Histórias do Paraná - O granadeiro

Histórias do Paraná - O granadeiro

O granadeiro
Lauro Grein Filho

Confúcio resumiu, numa só palavra, toda a estratégia do relacionamento humano: - "Reciprocidade". A concórdia entre as pessoas mantidas nas regras do toma lá e dá cá, troca de atenções a reger os convívios e animar as amizades. O desequilíbrio nos pratos da balança, a falta de retribuição a auxílios recebidos, o esquecimento a favores prestados, eis os ingredientes para o término das efusões amistosas, de imediato substituídas pela decepção, ódio, rancor, sentimentos levados à conta da expressão mútuo e irrecorrível: - "Ingratidão".
Estava no Hospital, em Castro, quando chegou o cliente, rapaz conhecido e amigo, a mostrar no braço imóvel e na tipóia mal feita a necessidade do atendimento médico urgente.
Desvencilhei-lhe o lenço provisório, constatando na dor e na impotência funcional os traços clássicos da fratura.
Radiografei, reduzi e imobilizei, satisfazendo-me com o arremate do aparelho gessado, ao qual dediquei toda a arte que sabia.
Livre da dor, reconfortado e reabilitado, o moço permaneceu ainda por algum tempo no consultório, demonstrando alegria pelo caso resolvido, animadamente conversando e contando sobre o acidente que sofrerá.
"Quanto é doutor".
"Ora deixa disso.
Você é meu amigo."
O jovem alargou mais o sorriso, despedindo-se com a recomendação de voltar no dia seguinte para controle e avaliação.
Nessa tarde corria pelo Fórum a apuração das eleições de 1954, transcorrida na véspera.
Quatro ilustres filhos da terra disputavam uma cadeira no Legislativo Estadual e o pleito se desenrolara aguerrido e ardoroso.
Não era candidato a nada, mas conhecia-se muito bem pela cidade o declarado antagonismo que me conflitava com um dos concorrentes, justamente o vencedor do pleito.
Um prestigioso médico que me detestava com todas as forças, quanto eu a ele.
À noite, estava no Clube às voltas com uma partida de xadrez, quando recebi na voz preocupada de um amigo o aviso de que uma turma se preparava para incendiar o meu carro.
Era uma "Belair", nova e importada, estacionada a poucos metros do "União e Progresso".
Corri para a porta, de onde divisei um aglomerado de gente entusiasmada, que aos gritos de "morra o Dr. Lauro", estourando bombas e espoucando foguetes, avançava do canto da praça em direção ao automóvel.
Entre os granadeiros, no meio da algazarra, destacava-se a figura esbelta do jovem companheiro que pela manhã me ocupara como médico e a quem, em nome de uma amizade, atendi e não cobrei. Lá estava, com o braço engessado, o gesso que lhe fiz, guapo e radiante a prestigiar o acontecimento, a abrilhantar a marcha, a alegrar a festa.
A minha presença e a participação de alguns amigos, o grupo se acomodou, se aquietou e imediatamente se apagou.
Os gritos cessaram como por encanto e apenas dois demorados foguetes acenderam timidamente pelo ar.
Em alguns instantes todos os baluartes da comemoração vitoriosa se dispersaram e, aos poucos, nenhum mais restou.
Do rapaz, não guardei mágoas ou rancores, preferindo beneficiar-me da lição que me ensinou.
Porque desde então, nunca mais me senti melindrado por qualquer forma de injustiça.
Nunca mais me detive em análises e conjecturas sobre os atos dos outros, nem me considerei ofendido ou desconsolado por estranhas maneiras de qualquer pessoa.
Passei a encarar o homem com todo o seu potencial de suas imprevisibilidades, não me surpreendo jamais com as diferentes gamas de seus critérios e comportamentos. A dose foi vigorosa e forte, o suficiente para me imunizar para o resto da vida.

Lauro Grein Filho, médico e membro da Academia Paranaense de Letras


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