domingo, 31 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Quatro histórias de futebol

Histórias do Paraná - Quatro histórias de futebol

Quatro histórias de futebol
Ernani Buchmann

O Colorado iria jogar em Ponta Grossa.
Para economizar o dinheiro do aluguel do ônibus, a diretoria dividiu a delegação nos carros dos diretores.
Ao diretor-financeiro do clube, Ivo Bordinhão, coube um reparte de quatro craques, todos gaúchos.
Iam com ele o goleiro Negri, o meia Torino e os pontas Ortiz e Galeno.
Bordinhão não acreditava muito no time, que achava mais apto a disputar o campeonato do Rio Grande que o nosso, mas, como bom torcedor, aceitou o sacrifício.
A viagem de ida foi calma e silenciosa, com os jogadores concentrados na partida. O resultado não decepcionou: o time ganhou do Operário por 4X0. Na volta, descontraído, Bordinhão resolveu pegar um gancho na conversa dos jogadores para fazer uma confissão:
- Olha, parabéns pelo jogo. E se eu estou elogiando é porque gostei mesmo.
Todo mundo sabe que se eu tivesse alguma influência na direção de futebol vocês não seriam jogadores do Colorado.
O ponta Galeno não perdeu a deixa:
- O senhor não se preocupe, seu Bordinhão, porque se a gente tivesse alguma influência junto à diretoria o senhor também não seria o homem do dinheiro.
Em Maringá, era costume os jogadores do time reunirem-se depois do jogo em um bar, localizado em cima da Rodoviária.
Certo domingo, depois de uma vitória, o central Virgílio, famoso por haver batizado o desodorante 1010 de Ioiô, ia chegando quando foi chamado por um diretor do clube, sentado em tomo de uma mesa onde não faltavam a cerveja e o aperitivo:
- Prochegue-se, Virgílio.
Venha aqui comer conosco.
E o Virgílio, puxando uma cadeira e servindo-se de uma azeitona:
- Então vou aceitar um conosquinho desses.
A azeitona também foi protagonista de outra história.
Melhor: o Azeitona, jogador e capitão do Jandaia, No velho estádio Orestes Thá os jogadores iam saindo do gramado, depois de um jogo em que o Água Verde tinha dado uma sova de 4X0 no time do Norte, quando o repórter Dias Lopes resolve perguntar ao capitão Azeitona como ele justificava aquela goleada. A resposta foi um primor:
- Nós mandamo no jogo, atacando o tempo todo e eles só ganharam porque fizeram quatro de cagada.
O Caramuru de Castro teve um período em que parecia ter fixação por nomes petrolíferos.
Jogaram por lá, em anos e posições distintas, craques inesquecíveis como Gasolina, Querosene, Amarelinho e até um Misturado.
Pois esse Misturado, em quem ninguém jamais havia prestado muita atenção, um dia resolve jogar tudo o que não sabia, contra o Primavera.
Pela primeira e única vez, foi considerado o melhor jogador em campo. E ao ouvir do repórter que havia ganho o motorádio de praxe, não se conteve:
- Eu, o melhor em campo? Não, isso é modéstia à parte do senhor.

Ernani Buschmann, publicitário

sábado, 30 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Massacre de índios

Histórias do Paraná - Massacre de índios

Massacre de índios
Ivo Nalce

Na primeira década do século, Rondon dizia que o Paraná estava na vanguarda dos direitos dos índios.
Só, que, digo eu, a coisa não era bem assim.
Neste século, os conflitos entre índios e brancos nos sertões do Paraná acontecem por dois motivos: um, a represália pelos ataques dos "bugres" para matar brancos, seja a cata de comida, seja por vingança.
Bugreiro — matador de índios — era profissão como outra qualquer. Há o testemunho do bugreiro João Martins que, voltando duma "caçada" trazendo um indiozinho aprisionado, encontra o monge João Maria: ao saber que os índios eram batizados, conforme me assegurou o infalíveljoão Maria, José Martins arrependeu-se e largou a profissão.
"As terras que os índios ocupam secularmente pertencem de fato a outros que as querem medir e cultivar". A frase de um jornal do Paraná mostra, claramente, o segundo e principal motivo dos conflitos entre brancos e índios neste século: a luta pela terra. O índio era um empecilho para a plena ocupação do fértil território paranaense.
Em abril de 1909, colonos do Piraí trucidam uma taba inteira e trazem uma menina índia como troféu, provavelmente para servir depois como mão-de-obra não remunerada.
Em Rio Negro e Palmas sempre houve matanças de índios. A pacificação dos Botocudos de Palmas, deu-se somente em 1915. Na década dos cinqüenta, os Xetás sumiram do mapa quando a especulação colonizadora destruiu suas florestas. O conflito pelos pinheirais da reserva indígena de Mangueirinha, na verdade, não terminou com o assassinato do cacique Ângelo Cretan, em 1980.
Tudo isso serve de introdução para contar o grande massacre de caingangues em Santo Antônio da Platina.
Em abril de 1911, o coronel (título honorífico) Evergisto Alves Capucho, abastado fazendeiro estabelecido à margem esquerda do Rio das Cinzas, reuniu treze peões para expedição contra os caingangues bravios, habitantes das matas entre os rios das Cinzas e Tibagi.
Outro fazendeiro deu a "passoca" — uma vaca gorda para churrasquearem durante a caçada — e começou a festa.
Um dos caingangues, mesmo baleado, atirou-se no Rio das Cinzas e chegou na outra margem.
Enquanto, deitando sangue, subia o barranco, os bugreiros platinenses, pacientemente, faziam fila para atirar, treinando pontaria. A carcaça ensangüentada do caingangue é arrastada pela correnteza.
Calcula-se em pelo menos vinte os caingangues mortos durante os cinco dias da "caçada". Um caingangue morto tempos antes por flechar um menino branco não entrou na conta, apenas, depois de morto, arrancaram-lhe a mandíbula, que foi levada como troféu para a Itália por um viajante.
Um cayuá pacífico também não entrou na conta porque foi morto por um caingangue. índio morto por índio não conta.
José Osório, inspetor do SPI
- Serviço de Proteção aos índios -no Paraná, reclama e o Dr. Freire, promotor da Comarca com fama de homem íntegro, denuncia quatorze bugreiros.
Mas como ninguém foi catar os cadáveres dos caingangues na floresta, não havia provas.
Os acusados alegam que foram para o mato churrasquear.
Apesar das reclamações do Serviço de Proteção ao índio, o inquérito deu em pizza, ou melhor, deu em passoca.

Ivo Nalce, historiador

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Histórias do Paraná - A festa dos vira-latas

Histórias do Paraná - A festa dos vira-latas

A festa dos vira-latas
Rodrigo Pereira Gomes

Este causo teria acontecido em Paranaguá. Se aconteceu mesmo, eu não sei, eu vendo a história que comprei.
E comprei do livro "Histórias e Estórias", que o parnanguara Túlio Lapagesse de Pinto, de pseudônimo "Zé do Itiberê"
publicou em 1971.
Duvidar dele era ofensa maior que xingar a mãe.
Pois vamos ao causo.
Era o tempo em que criar cachorro, quando não saía barato, resultava de graça.
Daí que tinha mais cachorro que gente em Paranaguá, muitos vivendo soltos pelas ruas.
Um perigo, com a raiva atacando a bicharada a três por quatro.
Para controlar um pouco a situação, funcionários da prefeitura alimentavam os cães com bolinhos de carne recheados com generosas doses de veneno.
Uma judiação, os cães estrebuchavam pelas ruas, ganindo de dor numa lenta e sofrida agonia. O povo começou a reclamar: "aquilo não é coisa que se faça com os pobres animais, as crianças se impressionam, têm pesadelos à noite.
Quando saiu reportagem de protesto no jornal, o prefeito mandou acabar com o envenenamento indiscriminado. E criou um serviço de recolhimento de cães vadios, a popular carrocinha. O chefe era um fiscal da prefeitura de nome Sérgio. Zé do Itiberê conta que o conheceu bem. "Quando não estava caçando cachorro, era músico da Banda Musical 5 de Fevereiro, a nossa gloriosa Venenosa".
A carrocinha agradou o povo.
Acabaram as cenas de horror de antes, e os cães vadios estavam sumindo das ruas. Já para a cachorrada, pouco mudou.
Os cães presos eram levados para as cercanias da cidade, onde a tropa do fiscal Sérgio - com o próprio dando o exemplo — os eliminava a marretadas e cacetadas na cabeça.
Melhor assim, devia pensar o fiscal, a prefeitura economiza no veneno.
Um belo dia, o fiscal Sérgio passeia junto à linha férrea do Porto
D. Pedro II, um vagão descarrila, vira e despeja sua carga de toras de madeira em cima do exterminador de cachorros.
Morte instantânea.
O enterro do fiscal — ou do que deu para ajuntar do corpo — seria realizado com toda a pompa e circunstância dos enterros daquele tempo.
Mas a meio caminho da casa onde fora o guardamento e o cemitério, o cortejo fúnebre começou a ser engordado por inesperados acompanhantes.
O primeiro a se incorporar, vindo tímido de uma esquina, ainda guardou alguma distância do final do cortejo.
Logo surgiu mais um, e outro, e mais outro, e muito mais... De repente eram dezenas, grandes, pequenos, de todas as raças, de raça nenhuma. A cachorrada toda balançando o rabo, latindo, metendo-se entre as pessoas do acompanhamento, correndo, fazendo a maior algazarra.
Na entrada do cemitério tentaram conter os bichos.
Inútil.
Enquanto os maiores rosnavam assustadores, mostrando os dentes, os demais enfiavam-se no meio das pernas das pessoas e corriam para dentro.
Entraram todos.
Também inutilmente a Banda Musical 5 de Fevereiro ensaiou tocar a marcha fúnebre, última homenagem ao companheiro morto. O coro de ganidos e latidos sobrepunha-se em muitos decibéis à música.
Só depois que a última pessoa saiu é que os cachorros deixaram o cemitério.
Aos bandos.
Agora sem latir, mas os rabos ágeis de contentamento.
Quem viu, jura: eles pareciam sorrir.

Rodrigo Pereira Gomes, funcionário público aposentado

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Histórias do Paraná - O profeta de Antonina

Histórias do Paraná - O profeta de Antonina

O profeta de Antonina
Valêncio Xavier

Desde o Monge da Lapa, que muita gente acredita ainda estar vivo, o Paraná é terra fértil para monges, profetas,
benzedores e curadores.
Em Antonina, o túmulo do Profeta da Costeira até hoje é motivo de romaria.
Basta deixar uma garrafa d’água em cima do túmulo, a água começa a ferver e, dizem, passa a ser um santo remédio
para qualquer mal.
Aguinaldo Vieira da Silva nasceu em Penedo, Alagoas, em 1914. De família pobre, era paralítico.
Quando estava com uns doze anos de idade, o menino Aguinaldo embarca de carona num navio e é deixado em Paranaguá.
Pede esmola e engraxa sapatos com muita dificuldade, pois só pode movimentar uma das mãos.
Aos dezessete anos, Aguinaldo mora de favor junto com uma velha senhora, também entrevada.
Moço bonito, longos cabelos sedosos, rosto de moça, Aguinaldo é mais um dos tantos miseravinhos que vegetam em Paranaguá.
Uma noite, voltando sonado para o casebre onde mora, vê, ou sente, a presença de um velho de longas barbas brancas.
Apesar das roupas esfarrapadas do velho, Aguinaldo lhe pede uma esmola:
Eu posso dar uma esmola sim, mas posso curar e dar a você o poder da cura.
O que você prefere? Aguinaldo não aceita a esmola.
Aquele velho seria, dizem, um milagreiro que desde tempos imemoriais aparece em Paranaguá.
Transtornado, Aguinaldo cai num sono profundo.
Acorda pela manhã, em seu barraco, completamente curado.
Ali mesmo realiza seu primeiro milagre: cura a velhinha entrevada que lhe dava guarida.
Os médicos parnanguaras não ficam muito satisfeitos com o novo concorrente.
Contam que moleques eram pagos para jogar pedras no barraco de Aguinaldo e ele acaba sendo preso por exercício ilegal
da medicina. A mulher do delegado sofria de enxaqueca, dessas que não saram nunca.
Com um simples copo d’água benzido, Aguinaldo cura-a para sempre e é liberado da prisão.
Apesar da fama, as coisas nunca vão muito bem para Aguinaldo em Paranaguá, muita perseguição.
Trazido a Antonina para curar um alcoólatra da família Cabral, acaba se radicando na Costeira, como um membro da família.
Fica muito amigo de Reginaldo Cabral, de sua idade, que será seu companheiro até o fim da vida.
Vem gente de todos os lugares procurar a cura e os conselhos do Monge da Faisqueira:
"eu era menininha, estava afogada com um osso de galinha na garganta, não conseguia respirar.
Minha mãe me levou ao Monge Aguinaldo, ele me deu farinha misturada com água e o osso pulou fora.
Devo minha vida a ele", diz Dona Rosinha, dona da tradicional restaurante que leva seu nome em Antonina.
Em junho de 1933, Aguinaldo morre.
Com tanta gente que veio de fora, foi o maior enterro visto em Antonina.
Na porta do cemitério, tiram uma foto que mostra o morto com os olhos entreabertos.
Afirmam que os abriu, na hora da foto, para abençoar quem tinha vindo ao enterro.
A foto vai gerar a crença que ele não morrera de fato.
Anos mais tarde corre o rumor que estava "corpo santo", crendice brasileira de que o corpo das pessoas santas conserva-se integro depois da morte: corpo seco.
Pedem a exumação, centenas de pessoas vieram ver o milagre.
Abre-se o caixão, o corpo está decomposto, mas a fé de Aguinaldo não morre.
Ainda hoje, pode-se ver gente rezando no seu túmulo azul cor do mar, pedindo ajuda.

Valêncio Xavier, escritor e historiador

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Histórias do Paraná - A fera que andou por aqui

Histórias do Paraná - A fera que andou por aqui

A fera que andou por aqui
Marcelo Oikawa

Atraído pelas histórias de sangue, coragem e pioneirismo, ele passou pelo Norte do Paraná nos anos 40.
Era quase um moleque, daqueles que passavam os dias nas praias, na capital do Brasil.
Seu pai, um advogado do Rio, tinha recebido 100 alqueires de mata como honorários, em Guaraci.
Não faria nada mal, fazendo um favor ao velho, vindo procurar essas terras.
Veio, mas foi logo embora, porque elas tinham sido ocupadas por posseiros, que haviam derrubado a floresta e estavam plantando, alegremente. O pai achou que não valia a pena brigar.
As terras não valiam quase nada.
Naquela época, o cheiro fresco da terra roxa e aventura estimulava a imaginação de todos e agarrava qualquer um, pelo nariz. E foi sentindo a memória desse cheiro que ele resolveu voltar alguns anos depois, quando se meteu em sérias encrencas com a polícia lá do Rio.
Como militante estudantil na campanha do Petróleo E Nosso, ele se envolveu num tiroteio com a polícia diante da sede da UNE. Duas pessoas morreram e 18 ficaram feridas.
Ele foi condenado a quatro anos de cadeia.
O Norte do Paraná era uma terra de grandes oportunidades.
Mas era também o esconderijo de todo mundo que fugia de alguma coisa. E ele veio se esconder, para esperar a poeira baixar.
Fugiu da frigideira e caiu no fogo.
Manoel Ribas tinha acabado de assumir como interventor do Paraná e uma de suas primeiras medidas foi anunciar com estardalhaço que iria lotear a preços populares 120 mil hectares em pequenos lotes a noroeste de Londrina. A notícia espalhou como um rastilho de pólvora por todo o país e em pouco tempo, milhares de posseiros e suas famílias estavam invadindo a região de terras devolutas, gerando tensões e violência.
Tudo isso culminou no início da década de 50 com a "Guerra de Porecatú", ou como se chamava na época, a "Coréia Paranaense", chegando a reunir mais de 1 mil e 500 posseiros armados, reivindicando a legislação de suas posses. O PCB, colocando na ilegalidade em 47, viu naquilo uma oportunidade para colocar em prática o famoso "Manifesto de Agosto", tese de tomada do poder pela força. O partidão, como era conhecido, envolveu-se nos conflitos, organizando e treinando os posseiros em táticas militares.
Ele não podia ficar de fora e já chegou participando da "Campanha de Solidariedade Aos Resistentes de Porecatú". Mas isso ainda era pouco e logo depois já estava trabalhando na sucursal do semanário paulistano "Hoje", um órgão do PCB, em Londrina.
Ficou dois anos.
Logo a guerra da "Coréia Paranaense" acabou, a poeira no Rio baixou e ele voltou para casa.
Sem muita causa para agitar, resolveu dar um tempo e foi ser cronista esportivo.
Quando deu por si, estava famoso e importante.
João Saldanha acabou sendo técnico da seleção brasileira nas eliminatórias da Copa de 70. Quando ele escalou as suas "onze feras", Nelson Rodrigues vibrou, saudando-o como o único capaz de qualquer coisa para buscar o caneco do Tri.
Ele não foi o técnico na Copa, mas as suas "feras" foram tricampeãs.

Marcelo Oikawa, jornalista

terça-feira, 26 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Os sepultos da Serra do Mar

Histórias do Paraná - Os sepultos da Serra do Mar

Os sepultos da Serra do Mar
Daniel Jacobus Fabri

Certa vez, levando-me por trem a Paranaguá, meu avô contou-me que seu avô, chamado Giacommo, estava enterrado em determinado ponto da Serra do Mar, próximo à Estrada de Ferro, local este que ele me indicou quando o nosso vagão por ali passou.
De fato, o Giacommo viera da Itália com muitos companheiros e suas jovens famílias.
O início da colonização estrangeira na Província do Paraná data de 1869, quando chegaram os primeiros imigrantes que se radicaram em Curitiba na Colônia Argelina (bairro Boa Vista) e no atual bairro Pilarzinho.
Porém, por volta de 1873, um tal de Sabrino Tripotti, esperto empresário da colonização, através do famoso panfleto "Amico Colonno", espalhado aos milhares na Itália, conseguiu convencer algumas centenas de famílias a imigrarem ao Paraná, indo instalar-se em Alexandra, no Litoral.
Ainda empolgados pelo panfleto de Tripotti, em 1877 vieram outras centenas de colonos que se fixaram em Morretes, fundando ah vários núcleos, entre eles o mais famoso com o nome de Colônia Nova Itália.
Entretanto, as adversidades climáticas, insalubridades e outros fatores, tornaram quase impraticáveis a sobrevivência destas colônias.
Devido a isso, tais núcleos, em Morretes e Alexandra, mantinham-se à sombra dos trabalhadores "que ali se executavam por conta do Governo e na expectativa do desenvolvimento que a Viação Férrea deve trazer". (Cf.
João José Pedrosa).
Para se ter uma idéia do numero de pessoas, imigrantes ou não, que trabalhavam na construção desta ferrovia, nos relata o Barão de Capanema: "O doutor Teixeira Soares, para manter em serviços
3.000 operários, arregimentara 9.000, dos quais, para mais de 5.000 permaneciam doentes".
Não se sabe quantos morreram.
Mas a causa mortis principal era a febre amarela, seguida de acidente de trabalho.
Para se imaginar o número de acidentes de trabalho, fatais ou não, basta percorrer o trecho da Serra do Mar, e observar as pontes, viadutos e túneis ali construídos.
De malária também não se sabe, porém sabemos que o Nonno Giacommo não morreu deste mal, mas sim por achar que, tomando o vidro inteiro de remédio contra a maleita de uma só vez, curar-se ia de imediato.
Puro engano.
Deixou uma viúva jovem e bonita e dois filhos.
Com o término da ferrovia em dezembro de 1884, muitos imigrantes sobreviveram e espalharam-se por Curitiba e Paraná adentro.
Outros, como os Giacommos, Pietros, Giuseppi e "eticeteras", sepultos da Serra do Mar, deixaram apenas suas "sementes" que fecundaram e hoje constituem a grande maioria dos descendentes daqueles imigrantes italianos intrépidos e desconhecidos.

Daniel Jacobus Fabri, engenheiro químico

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Heróis da Lapa

Histórias do Paraná - Heróis da Lapa

Heróis da Lapa
Francisco Brito de Lacerda

A Revolução Federalista, se examinada como luta fratricida, não deixa de ser um infortúnio, uma desventura, até. Muito melhor se não tivesse acontecido.
Embora da guerra civil adviessem injustiças de lado e lado, isso não implica em negar-se à resistência da Lapa a condição de episódio memorável.
Também a Guerra da Secessão, nos Estados Unidos (ação sangrenta entre irmãos e, por isso, uma desventura) não obstou que aquele país passasse a cultuar como herói nacional o general Lee (comandante sulista, cercado em Appomatox), que só capitulou após indômita resistência.
Entre 16 de janeiro e 10 de fevereiro de 1894, a Lapa resistiu ao cerco federalista, e o fez de forma decidida, impávida, a ponto de o feito de seus defensores, conforme Rocha Pombo, figurar como "exemplo na história pátria". Cercada de montanhas, a pequena cidade era local propício para não resistir 48 horas, ou 72 horas no máximo, como calculava Gumercindo.
Os sitiados tinham mais de 900 homens (os mais otimistas chegam a admitir 1200), mal adestrados, na maioria civis voluntários, descrescidos em recursos bélicos.
Os sitiantes, enquanto isso, contavam com uns 3 mil homens, postos em plano avantajado, sob todos os aspectos.
Mas a Lapa, em lugar de agüentar o cerco por 48 ou 72 horas, prolongou essa prodigiosa epopéia pelo espaço de 26 dias.
Aqueles 26 dias, com os federalistas retidos em volta da Legendária, sem condição de conquistar novos espaços, contribuíram, e muito, para consolidar a República nascente.
Entre os maragatos ou federalistas, conviviam quatro grupos heterogêneos.
Querendo substituir Floriano no poder, os adeptos de Custódio de Mello pregavam o golpe. Já o almirante Saldanha, vulto da Guerra do Paraguai, não escondia sua maior aspiração: restabelecer a monarquia, entregando-se o trono à Princesa Isabel. A terceira tendência (majoritária, por sinal) preconizava o parlamentarismo federalista: eram os seguidores de Gaspar Silveira Martins, um radical. E, por último, os libertários, entre eles caudilhos oriundos do Uruguai, com o lendário Gumercindo a ostentar o papel de chefe do chamado Exército Libertador.
Enfrentando aqueles dias de matança e torturas, o general Gomes Carneiro e seus comandados defendiam a ordem constituída, o cumprimento de um dever militar.
Tais valores explicam por que as comemorações do ano de 1994, centralizadas na Lapa, guardam um caráter nacional.
Razões diversas, entretanto, levam algumas pessoas a cultivar cega ojeriza à memória daqueles que ajudaram a salvar a República.
Floriano é uma dessas vítimas, e o pretexto vem sendo a tragédia do quilômetro 65, quando o Barão do Serro Azul e seus companheiros foram cruelmente assassinados.
Sem menção aos crudelíssimos degolamentos, também criminosos, essas pessoas (e ninguém lhes tira o direito de teimar) alegam que tudo não passou de vindita dos pica-paus. Não querendo reconhecer no general Ewerton Quadros (um nevropata) a responsabilidade pela eliminação de inocentes, valem-se os negativistas (na base do "consta") para lançar acusações a Floriano, com o objetivo (consciente ou inconsciente, não se sabe) de empanar o brilho das comemorações do ano de 1994. A verdade, porém, é bem outra. A tragédia da Serra uniu, no Paraná, pica-paus e maragatos.
Isso está no livro de Leôncio Correia, que era sobrinho e afilhado do Barão, além de florianista exaltado. O livro teve
colaboradores pertencentes aos dois lados. O doutor João Cândido Ferreira, capitão-médico das forças legalistas, que deu assistência final ao general Carneiro, foi um deles.
Referindo-se ao fuzilamento do Barão e de seus amigos, definiujoão Cândido o episódio como "o mais covarde, e o mais tétrico o mais revoltante dos crimes".
A cidade da Lapa, por decisão do Conselho do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, considerado seu acervo arquitetônico e sua história, palco que foi do cerco de 1894, marcante na vida brasileira, passou à condição de patrimônio nacional, tal como Ouro Preto, Olinda, Parati.
Significando a vontade do povo do Paraná, a Constituição Estadual de 89 determina a criação de comissão para promover as comemorações alusivas aos 100 anos da morte do general Carneiro, em fevereiro de
1994. E o ministério do Exército deu à Quinta Região Militar, que compreende o Paraná e Santa Catarina, o honroso e dignificante título de REGIÃO HERÓIS DA LAPA, integrante de sua bandeira.

Francisco Brito de Lacerda, advogado

domingo, 24 de julho de 2016

Histórias do Paraná - O chefe da banda

Histórias do Paraná - O chefe da banda

O chefe da banda
Lauro Grein Filho

A primeira vez que servi à pátria era muito jovem.
Andava pelos 14 anos, quando o Novo Ateneu decidiu a matricula de todos os quintanistas na Escola de Instrução Militar 350, anexa ao Colégio.
Foi assim que providenciei o uniforme "cáqui" numa alfaiataria "civil e militar , as perneiras na fábrica Ewaldo da Praça Rui Barbosa, o quépi numa loja da André de Barros, e, de túnica, culote e coturno, ao dia e hora certos, compareci altivo e orgulhoso para as exigencias do serviço.
Havia exercícios de ordem unida, educação física, marchas, linha de tiro, uma programação rigorosamente cumprida,
ao fim da qual me outorgaram um certificado e que nada me serviu e nada me valeu.
Bem por isso, dois anos mais tarde, em 1937, com outro uniforme e de perneiras novas, fui quitar meu dever militar nas casernas do Tiro 19, Rio Branco.
Existia na época duas opções:
- o Coritiba e o 19. O primeiro, aristocrático, reunia estudantes e acadêmicos, gente fina da cidade; o segundo, popular e democrático, acolhia principalmente operários, trabalhadores, pessoal dos bairros e das colônias. A minha decisão pelo último foi influenciada pela tradição, pela História, e por julgá-lo mais importante, Tiro de Guerra, ao invés de Escola de Instrução Militar 321, como se chamava o Coritiba.
Demais, o Francisco Accioly, o Marçal Justen, o Bartolomeu e o Alberto Marques, colegas do Ateneu tinham-no preferido no ano anterior e achei que deviam estar certos.
O 19 funcionava no quarteirão hoje ocupado pelo Teatro juaíra, com entrada pela rua Tibagi.
As instruções eram à noite, ae segunda a sábado no quartel, e domingo pela manhã, nas ruas ou nas alamedas do Passeio Público.
A disciplina era preservada nas ameaças e nos berros do comandante, Tenente Ascendino, a nos acusar de caçadores de cadernetas, burros, energúmenos e batráquios.
Guardo e recordo o meu número, 45, a casa das armas, os desfiles, as instruções de campo, os sargentos Baptista, Acyr, Laurentino, o cabo Wilson Dacheux Pereira, e alguns colegas, o Odilon, o Anfrísio, o Amaral, o Lamberg, o Darret.
Lembro também o que me aconteceu no último dia.
Tinha visto, em um desfile do Coritiba, o Moacyr Martins, meu amigo da Ermelino, a marchar isolado na frente da tropa, sem mochila e sem fuzil.
Evoluía solto e à vontade, com os tambores fáceis à retaguarda, dono do alinhamento, do passo e de tudo, enquanto os outros lá atrás se danavam ao peso das armas, dos apetrechos e da vigilância.
Em cada esquina o Moacyr erguia o braço direito e num voleio elegante e autoritário indicava o rumo da nova direção.
Ele era o "Chefe da Banda", e achei sua posição de um destaque fora de série.
Estávamos prontos para a grande marcha de encerramento, percurso de 30 quilômetros, válida como prova final. O Capitão responsável pela inspeção já havia chegado e os atiradores ultimavam seus preparativos, todos armados e equipados.
Todos menos eu.
Falara com o Amaral, que rufava a caixa e liderava os tambores, informando-lhe que havia sido designado "Chefe da Banda" e com isso marcharia na frente deles e de toda a Companhia.
Boa praça, logo admitiu, sem maiores perguntas, pouco se importando com a estranha novidade.
Tudo justo e perfeito, antegozava já minhas regalias, livre e desembaraçado da carga incômoda, quando uma voz firme me surpreendeu no pátio: -"Atirador". Voltei-me num instante.
Era o Capitão Haroldo Bizerril: -"Onde está o seu fuzil?"
- "Não preciso Capitão, sou o Chefe da Banda".
- "Apanha seu fuzil e vai com ele a tiracolo".
Além do vexame e do fuzil levei também uma tremenda desvantagem, pois não tendo com quem ensarilhar a arma, dela tinha que cuidar, mesmo nos descansos dos auto-horários.
E nunca mais fui "Chefe da Banda".

Lauro Grein Filho, Medico, presidente do Centro de Letras da Paraná

sábado, 23 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Em Cascavel tem cascavel

Histórias do Paraná - Em Cascavel tem cascavel

Em Cascavel tem cascavel
Moysés Paciornik

Há dias nesta coluna, um leão do Lions, sem ferocidade, cascavelense, sem veneno, explicou por que Cascavel continua a chamar-se Cascavel, apesar de não ter mais cascavéis.
A primeira vez que lá fomos furou o pneu do nosso avião.
Era um Douglas, da Real.
Vinha de Foz do Iguaçu.
Um dos passageiros desceria em Cascavel.
Daí a parada extraordinária.
No campo de pouso, campo mesmo, que todo coberto de capim original, nem bem o aviãozinho encosta, a asa direita baixa,
o bicho trepida, rabeia.
Na freada brusca, parece que vai tombar.
No susto:
- Que foi? Que foi?!
O jeito risonho do calmo e gorducho piloto vem nos desassustar.
- Não foi nada de grave.
Desce, volta para mostrar.
- Furou o pneu da direita.
Acertei bem nos cravos desta ferradura.
Algum cavalo a perdeu bem onde decidi pousar.
Na cidade deve ter borracheiro.
Enquanto conserto o pneu — calculo meia hora, uma hora — podem descer, passear por aí.
Do alto a gente vira na extensão imensa da impressionante floresta falha e mais falhas, chão coalhado de troncos de árvores recém derrubadas.
De cortar o coração.
De longe em longe, casebres isolados.
Depois de algum tempo o avião comecara a baixar em direção a duas fileiras de casas, ladeando rua de barro.
Uns duzentos metros, se tanto. O vermelho vivo das telhas mostradas a pouquíssima idade da "cidade".
A rua começava quase que diretamente do campo de aviação, situado num plano mais elevado.
Passeando, deu para constar, casas baixas, de madeira... Carroças.
Cavalos.
Jipes.
Tudo.
Caminhões, muitos. Carros, poucos.
Enlameados. Tudo enlameado.
Homens de botas, sapatões.
Mulheres, uma ou outra. Armazém.
Botequins, um maiorzinho. Entramos.
Provocamos o balconista.
- Só nos matos.
Aqui na cidade tinha, agora não tem mais.
- Então me sirva um refrigerante.
- O quê?
- Um refrigerante, gasosa.
- Ah, sim! Gasosa.
Temos.
Da qual quer?
- De framboesa, (coca-cola ele não conhecia, lá ainda não tinha chegado). E bem gelada.
- Gelada? Só fresca, frescor do porão.
Serve? (lá, eletricidade ainda não tinha chegado).
- Serve.
Neste calorão. A sede está de matar.
Quanto custa?
- Cinco mil réis.
- O quê? Está louco? Em Curitiba sai um mil réis cada garrafa.
- Em Curitiba? Aqui é Cascavel.
Por mil réis, vá matar sua sede lá em Curitiba.
Ora veja só. Passe bem.
Boa Viagem.
- Não, não, me dê assim mesmo.
E ainda diziam:
Cascavel em Cascavel? Não, só nos matos, na cidade não tem mais.
Não, hein? Mas, que a gasosa estava boa estava.
Naquele calorão, com aquela sede, valia bem os cinco mil réis.
Ou era cruzado? Ou era cruzeiro? Ou era... Que dinheiro será que era?

Moysés Paciornik, médico

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Cadê tudo isso?

Histórias do Paraná - Cadê tudo isso?

Cadê tudo isso?
Roberto Gomes

Espero que ninguém pretenda farejar neste pequeno texto, pretensões doutrinarias ou pregação de novos rumos
para a literatura no Paraná. Desejo apenas registrar um espanto que me persegue desde que botei os pés nestas terras.
De inicio, foi para mim um choque a descoberta de literatura de Dalton Trevisan, que naquela época, é bom lembrar, tinha mais detratores do que adeptos. Só foi reconhecido após a recuperação de sua obra fora dos limites paranaenses.
Coisas de províncias? Pequenos ressentimentos, nos quais o Vampiro é mestre? Talvez.
E o espanto seguinte: prisioneiro da pequena realidade urbano-industrial de Blumenau , onde nasci, fiquei fascinado com a riqueza da história da colonização do Paraná. Custei mesmo a entender, se é que até hoje entendo, a sua diversidade, a mistura de populações vindas das mais diversas partes da Europa e do Brasil.
As diferenças regionais me pareceram surpreendentes. O litoral isolado ou de decadência precoce, o norte velho parado no tempo. O sudeste e o norte pioneiro com suas lutas, seus jagunços, sua capacidade espantosa de produzir e enriquecer. E mais: o Paraná que foi visto por Cabeça de
Vaca, pelos caingangues, pelos monges, as histórias em torno de algumas figuras lendárias (Mane Facão, Lupion, Barão do Cerro Azul), os episódios relacionados com a Revolução de 1893, com o Cerco da Lapa, com o Contestado.
Me perguntava: como tudo isso não virou literatura? Não me refiro a uma obra isolada, mas a uma literatura, uma linha de criação e investigações literárias que poderia encontrar aí um filão riquíssimo.
Acho que não é arbitrário lembrar que é uma constante nas grandes literaturas no Brasil a temática histórica. A Minas que temos na cabeça é em grande parte formada por aquilo que escreveram Guimarães Rosa e Drummond.
Como entender o Rio Grande do Sul sem Erico, José Guimarães, Luis Antonio de Assis Brasil e a literatura regionalista? O nordeste é um exemplo óbvio, mas também o Rio de Janeiro (de Machado a Marques Rebello e Antonio Callado) e São Paulo. E hoje o romance histórico se renova, revelando novos autores e atraindo consagrados, como Rubem Fonseca.
Cadê tudo isso no Paraná? Cadê a história política, econômica, social? Cadê as violências, as mortes, as traições, as tiranias.
Cadê o homem paranaense de carne e osso que morreu numa tocaia? Cadê a paixão de viver e morrer, de sonhar e trair, de mentir e roubar, de explorar e criar, e não apenas o idílico Paraná dos Paranistas ou, pior ainda, dos publicitários? Cadê, na literatura, os traços de Poty?
Os poucos exemplos que conheço fazem parte de uma geração recente. Há José Angeli, com o bom e esquecido romance "A Cidade de Alfredo Souza", talvez prejudicado por uma edição desastrosa.
Ilá Domingos Pellegrini, que deu vida a personagens que só seriam possíveis no Paraná, como por exemplo, "O Homem Vermelho" e "As Sete Pragas". E temos o caso notável, "O Mez da Grippe", de Valêncio Xavier, esta delícia de livro objeto-texto-colagem, que reinventa ao mesmo tempo o tratamento literário do material histórico.
E pouco, pois, embora excelentes, são obras isoladas.
Escrevendo um romance, ainda inéditos, a respeito de jagunços, posseiros e companhias colonizadores, me vi obrigado a enfrentar montanhas de documentos para responder a perguntas simples: como se vestia, amava, se divertia, um jagunço no Sudoeste na década de 50? No que acreditava um
posseiro vindo de carroça do interior do Rio Grande do Sul para se instalar no Gleba Missões? O que pensavam de si mesmos um dono de companhia de terra e seu engenheiro-chefe? O que faziam as mulheres enquanto seus homens armavam tocaias ou fugiam para os matos? Que figura poderia surgir numa estrada deserta entre Beltrão e Marmeleiro, em outubro de 1957?
O Paraná literário está para ser inventado. Não se trata de descartar a ficção urbana ou aquela que não usa material histórico.
Trata-se de perguntar: onde foi parar tudo isso? Por que não virou ficção? E, se a pergunta é legítima, não será por esta razão que a imagem do Paraná se presta a tantas manipulações estereotipadas, sejam idílicas, segregacionistas, gênero paraíso paranista perdido, ou publicitária?
Em resumo, há muitas literaturas na morada do Senhor. A ausência do Paraná na cabeça dos que escrevem pode ser um grave prejuízo, ainda que não seja nenhuma obrigação para ninguém.

Roberto Gomes, professor e diretor da Editora da UFPR

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Os curdos no norte do Paraná?

Histórias do Paraná - Os curdos no norte do Paraná?

Os curdos no norte do Paraná?
Ruy C. Wachowicz

Na década de 20, o Norte do Paraná quase foi transformado pelos ingleses da "Paraná Plantation" - a maior empresa
colonizadora da região -, num local de despejo para as populações curdas do norte do Iraque.
Os ingleses haviam encontrado petróleo naquela região iraquiana, a qual estava então sob a tutela inglesa.
Os curdos criavam muitos problemas para os ingleses, devido a sua tradicional agitação nacional.
Para aliviar essas pressões que ameaçavam os lucros que o petróleo prometia proporcionar, resolveram transferir
mais de 100 mil desses elementos para as terras da "Paraná Plantation" situadas no Norte do Paraná.
A "Casa Rothschild", a "Lazard Brothers", o príncipe de Gales e a Liga das Nações, pressionaram o governo de
Getúlio Vargas para que concordasse em recebê-los.
As negociações transcorreram em segredo, sem que os meios brasileiros de comunicação tomassem conhecimento.
Mas, em dezembro de 1933, o assunto transpirou.
Os advogados e intelectuais de Curitiba estavam reunidos em caráter permanente, pois era época de Constituinte.
Resolveram pois opor-se à chegada desses curdos, que por ignorância eram chamados de "assírios".
Dois meios de comunicação foram os mais usados contra essa imigração: a imprensa escrita e o microfone da Radio Clube,
PRB2, recentemente instalada em Curitiba e que era no momento uma verdadeira "coqueluche" popular.
A emissora era um das primeiras estações de transmissões comerciais instaladas no Brasil.
A rádio cedeu gratuitamente seus microfones e os advogados chamaram seu programa de "A Voz do Paraná".
Os curdos eram apresentados como sendo uma imigração indesejável.
Eram chamados de "párias", "raça sem fogões e sem altares", "salsugem da civilização", "lixívia da sociedade",
"elemento batido pelas histórias", etc., etc. Várias entidades em Curitiba, lideradas pelas sociedades operárias,
chegaram a organizar um "meeting" (termo usado na época para denominar comício) na praça Ozório.
Toda noite, um advogado era encarregado de palestrar no microfone da PRB2. A nível nacional, os causídicos paranaenses
aliaram-se à Sociedade dos Amigos de Alberto Torres.
Apesar do Ministro Salgado Filho já haver dado sua concordância para introduzir os "assírios", a própria "Paraná Plantation" desistiu do empreendimento.
Concluíram os ingleses que, estando a opinião pública contra a ação da campanha, o restante das terras no norte sofreria forte desvalorização.
Optaram pois em vendê-las em regime de pequena propriedade a agricultores de qualquer nacionalidade.
Safou-se pois o Paraná desse exótico empreendimento.

Ruy C. Wachowicz historiador eprofessor universitário

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Histórias do Paraná - O rei da Boca Maledetta

Histórias do Paraná - O rei da Boca Maledetta

O rei da Boca Maledetta
Roberto José da Silva

Cabelos brancos, 68 anos, a barriga encostada no balcão meio gasto do Bar do Ari Túlio, Germano Franceschini toma mais um gole de vinho, fecha os olhos e começa a contar mais uma história da "sua" Santa Felicidade.
Ali na "Boca Maledetta" ele é rei.
Melhor: presidente.
No tradicional bairro italiano de Curitiba não há ninguém que não o conheça.
Modéstia, por isso, não é seu forte: "Sou mais famoso que o Roberto Carlos aqui por estas bandas", se gaba.
Duvidar como? Criador e organizador da Festa do Vinho, Germano ajudou, literalmente, a construir aquele bairro onde seus pais, vindos das montanhas do Vêneto, se instalaram.
Empreiteiro particular, ergueu muitas das casas que hoje encantam os turistas que para lá se dirigem em busca de uma boa polenta ou lingüiça de porco.
O crescimento do bairro, contudo, não o agradou muita Ele olha o trânsito da avenida Manoel Ribas, reclama da fumaça, da correria das pessoas. "Está todo mundo estressado", conclui.
Bons tempos aqueles onde por ali só se falava italiano e só os ricos iam estudar na cidade.
Germano estudou até o quarto ano primário, mas fez o curso superior da vida na roça, nas ruas, nas casas da Sua Santa Felicidade.
Até os 18 anos pegava firme na enxada para ajudar a família.
Rezava sempre para que pelo menos um dia da semana chovesse. O motivo era a gaita do vizinho José Miola. "O baile atravessava o dia e só acabava quando os mais velhos lembravam que no dia seguinte o sol poderia surgir novamente", recorda.
O sotaque italiano é marca inconfundível deste brasileiro. E com ele que conta um aperto na época da baixa do exército. Época de guerra, teve que aportuguesar o sobrenome nos documentos, mas se traiu na hora de assinar a papelada.
Tascou lá um "ch" original e o capitão comandante o engaiolou por mais 60 dias no quartel. "Eles pensavam que eu era quinta coluna".
Quinta coluna? O Germano? Ele termina sua história e os amigos de copo e balcão caem na risada.
Depois, arrastam-no para mais uma rodada de "morra". O homem que é mais conhecido que o "Rei" em Santa Felicidade cumpre esta rotina diária como o mais doce dos prazeres da vida.
Sempre falando, quase sem parar. "Se eu não entrar para história do bairro assim, pelo menos as pessoas vão saber das casas que construí. E essas vão ficar de pé".

Roberto José da Silva, jornalista

terça-feira, 19 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Inolvidáveis congadas

Histórias do Paraná - Inolvidáveis congadas

Inolvidáveis congadas
Benedicto Bueno

Salutar o movimento que explode nas telinhas domésticas, tentando revigorar o folclore tão arraigado ao gosto popular por esses brasis.
Na Lapa, antiga e lendária, entre folguedos tantos que faziam a delícia do lapeano de outrora, sem dúvida encimava o rol da representação entusiástica das sempre fabulosas congadas.
Data melhor para evento, impossível.
Dia 26 de dezembro, data comemorativa de São Benedito, justo no dia seguinte ao Natal.
Logo cedo, o foguetório e o repicar dos sinos denunciavam a abertura das festividades.
Aos poucos, o povo, no melhor de suas fatiotas domingueiras, ia se concentrando ao redor do cruzeiro no pátio da capelinha dedicada a São Benedito e a Nossa Senhora do Rosário, no mesmo local onde hoje se ergue imponente o Santuário de São Benedito.
Ali, em altar improvisado, transcorria a celebração de missa solene.
Quando o padre ordenava: -Ide, a missa terminou - a liturgia dava lugar à recreação tão mais esperada.
Leilões aqui, barraquinhas acolá. As indefectíveis rodas de fortuna e pescas milagrosas.
Em frente à capelinha, o hasteamento do mastro, em cujo cimo uma bandeira com a efígie do santo, ao sabor do vento, facultava ao homenageado observar a cidade em suas minúcias.
Lá pelas tantas, alguém anunciava: - A dança dos congos vai começar... Brincadeiras e quitutes eram esquecidos, o leilão postergado. A multidão queria saber das congadas, se apinhando ao redor daqueles combatentes pujantes que, vestes de milícia e armas de riste, compareciam para recordar, com cantigas e danças, os feitos bélicos de seus antepassados.
O soar dos tambores de guerra trazia consigo o cortejo dos congos. E adentrava pela multidão, num majestoso abre-alas, nhô Jordão, rei dos congos (o mais rei de todos), seguido de numerosa corte.
Com evoluções e gestos a traduzir respeito infindo ao monarca, lá estavam o príncipe Antônio Rocha,
o secretário José Manoel da Silva, o porta-bandeira Zé da "nhá" Marica, os fidalgos João do Noé, Augusto Severiano, José Pedro Maximiliano, Benedito Lagarto e tantos outros congos grandes e outros tanto de conguinhos.
Iniciada a representação, os congos se defrontavam com o embaixador (João Manoel da Silva) da rainha Zimba, acompanhado do cacique (Olívio Sabino) e seguidores. Há a confusão, o conflito... mas ao final impera a paz e o congraçamento para festejar São Benedito e a Virgem do Rosário.
Todo esse histórico transcorria entre rufar de tambores, danças animadas, coloridas e décimas de primeira grandeza.
Ao final, o espetáculo se transmutava em apoteose de amizade entre dois povos, que unidos agradeciam à Santa do Rosário e a São Benedito, festejando-o com versos lindos e simples como estes:
"Oi vamo minha gente, Vamo d’um modo bunito
Oi venerar o nosso santo, Que se chama Benedito."
De princípio a fim, as apresentações eram aplaudidas com delírio pelo povo, em reconhecimento àqueles artistas inatos.
Inda hoje, nossos mais velhos, quando recordam as proezas de nossos congos, parecem declarar: -"Ah!... que saudades que eu tenho das congadas de minha vida..."

Benedicto Bueno, tabelião aposentado na Lapa

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Depois nóis acerta, Dotô

Histórias do Paraná - Depois nóis acerta, Dotô

Depois nóis acerta, Dotô
Débora Iankilevich

Norte do Paraná. Anos 50. A cidade de Centenário do Sul, então distrito de Jaguapitã, não era em nada diferente das demais cidadezinhas do Norte: uma rua só de terra vermelha, que virava barro puro a cada chuva.
Para circular depois de uma chuvarada, só de jipe e olhe lá. Viajar a Londrina ou a Curitiba exigia paciência e coragem.
Para chegar à capital, 13 horas de uma viagem sofrida e cansativa.
Mesmo sabendo que não ia ser nada fácil, o jovem médico, formado em 1948 pela Universidade Federal do Paraná, resolveu arriscar.
Incentivado pelo amigo advogado Dálio Zippin, foi conhecer o Norte do Estado.
Ficou uns tempos em Paranavaí, depois passou por Cambará, Jacarezinho, Bandeirantes, Londrina.
Ficar mesmo, para trabalhar, ficou em Centenário do Sul, apesar dos pesares.
Montou consultório de clínica geral num quarto da casa do farmacêutico José Gurgel, pôs uma placa na porta da frente e ficou no aguardo da clientela.
Fez de tudo um pouco.
Atendia a todo tipo de pessoas, desde parturientes até tuberculosos.
O que mais ouvia de seus pacientes, gente muito humilde, sem recursos ou instruções, era uma frase que aprendeu rápido, ai se tornar praxe: "depois nóis acerta, dotô". A maioria voltava mesmo, depois, para acertar.
Quem não tinha dinheiro pagava como podia.
Um porquinho, umas galinhas.
Ou não pagava.
Mas nem por isso deixava de ser atendido.
Eram tempos difíceis. O Norte do Paraná vivia a sua Guerra da Coréia, disputa de terras devolutas entre posseiros e grileiros, esses contando com a providencial "ajuda" da polícia de então, financiada por grande latifundiários.
Um banho de sangue em que as vítimas, mortas às centenas, eram os pequenos agricultores.
As tocaias eram diárias.
Morrer ou matar era uma questão de sorte.
Ou pontaria.
Numa madrugada, o médico foi acordado com batidas na janela. O líder dos posseiros tinha sido atocaiado e precisava de ajuda. Zé Sem Medo era seu nome e fazia jus ao nome e à fama.
Anos antes, quando a guerra pela posse da terra iniciava, tinha ido a pé, de Centenário do Sul ao Rio de Janeiro, para contar ao presidente Getúlio Vargas o que acontecia no Paraná. Recebido pelo vice, ouviu a promessa de que as autoridades iam resolver a situação.
O médico cuidou do ferimento do Zé Sem Medo, um balaço no ombro. E depois disso nunca mais teve notícias dele.
Hoje, Dia do Médico, o doutor Salomão lankilevich, personagem dessa história, completa 70 anos, dos quais quase 50 dedicados ao exercício de uma medicina honrada e digna, sem concessões ao mercantilismo que tomou conta da profissão.
Parabéns e obrigada, doutor.

Débora Iankilevich, jornalista. Dia do Médico de 1993.

domingo, 17 de julho de 2016

Histórias do Paraná - A fuga do Juiz

Histórias do Paraná - A fuga do Juiz

A fuga do Juiz
Alceu A. Sperança

Ainda não era chegado o tempo do jaguncismo.
Primeira metade da década de 50, Bento Munhoz da Rocha Neto acabara de conceder a Cascavel a condição de Município, emancipando-o de Foz do Iguaçu.
Região pioneira, frente avançada na colonização do Paraná, Cascavel vivia o reinado econômico da madeira.
Era, contudo, uma "cidade" feíssima. A comarca fora criada à força, imposta pela Maripá, a companhia colonizadora toda-
Çoderosa que se estabelecera em oledo. E que a Assembléia Legislativa não criaria a Comarca de Toledo, em 1953, se a de Cascavel também não fosse criada.
As duas, afinal, foram autorizadas pelo Desembargador José Munhoz de Mello, presidente do Tribunal de Justiça do Estado, de forma salomônica.
Em Toledo tudo correu de acordo com o previsto.
Naquele dia 9 de julho de 1954, o juiz Cid Cordeiro Cimas assumiu o comando da Comarca sem um só incidente.
Mas em Cascavel tudo foi diferente.
A solenidade de instalação do Fórum estava prevista para as 14h. O juiz Inácio Pinto de Macedo, designado pelo Tribunal para assumir a direção da comarca, desembarcou do avião DC-3, da Real Aerovias, às 9h da manhã. Recebido com as honras devidas pelas autoridades municipais, a cidade ensaiava uma festa, com o tradicional churrasco das grandes ocasiões. O primeiro juiz cascavelense fez um giro rápido pela pequena cidade e sem hesitar ordenou o transporte de sua mala de volta para avião, cujo retorno a Curitiba estava previsto para as 14h daquele mesmo dia e horário determinado para sua posse.
Alegando que o clima era "muito pesado", Macedo embarcou e "fugiu", deixando para trás a festa e o churrasco.
Os temores de Macedo logo se confirmaram.
Um dos primeiros jagunços submetidos a julgamento ameaçou resolutamente de morte o juiz Aurélio Feijó, substituto de Macedo à frente da Comarca, sem poupar o promotor, o próprio advogado e jurados.
O clima era mesmo "pesado". Num dos mais freqüentados pontos de encontro, um agricultor ameaçou o inimigo de morte, "serviço" que seria completado bebendo o sangue do morto. A ameaça foi cumprida à risca, em público, e confirmada tranqüilamente pelo autor no curso do julgamento.
Por essa época, um jagunço encontrou o desafeto dentro da Igreja de Santo Antônio e o convidou a "morrer lá fora para o barulho não incomodar os santos."
A comerciante Lídia Luchesa, muito religiosa, colocava um crucifixo nas mãos de cada corpo que tombava a tiros nas ruas de Cascavel.
Seu estoque de crucifixo não durou muito.
Eu tinha pouco mais de dois anos quando o vereador Adelino Cattani caiu morto ao lado da minha mãe, que me conduzia pela mão, fuzilado por um inimigo.
Bem poucos, diante dos fatos que se seguiram, chamaram o Dr. Macedo de "covarde". Além dos mais, seus amigos afirmam que ele fora designado para a Comarca de Cerro Azul por um decreto de 2 de julho de 1954. Ou seja: mais de um mês antes da instalação da Comarca de Cascavel.
Assim, a "fuga" do juiz é um episódio que faz mais parte do denso folclore do nosso "faroeste" que da história heróica do Poder Judiciário paranaense.

Alceu A. Sperança, jornalista em Cascavel

sábado, 16 de julho de 2016

Histórias do Paraná - De repente, a salvação

Histórias do Paraná - De repente, a salvação

De repente, a salvação
João Carlos Calvo

Uma noite, lá nos idos de 1959, os habitantes de uma pequena cidade do Norte do Paraná estranharam muito, porque, já nas imediações das 23 horas, um impertinente "ronco" de avião perturbava o silêncio de mais uma noite tranqüila da localidade.
Avião, àquela hora?
Algumas anormalidades estavam acontecendo.
Foi quando um dos moradores locais resolveu tentar descobrir o que estava se passando, já com alguma desconfiança do que fosse.
Como se relacionava com a Copei, solicitou que fossem apagadas as poucas lâmpadas existentes na iluminação pública.
Ato contínuo, ligou a bateria de seu veículo a um cabo elétrico, acoplado a um possante projetor. E lançou um fortíssimo jato de luz para o alto, muito destacado pela escuridão reinante.
Instantes depois, o avião, tal qual uma mariposa, "achegou-se" ao facho de luz, como sinal de que "céu e terra" estavam ligados no mesmo episódio.
Lá de baixo, o morador da cidade, com alguns conhecimentos de telegrafia e muitos de rádio amadorismo, começou a "telegrafar" uma mensagem, depois que o rádio da aeronave não respondeu às suas chamadas.
Dando sinais de luz, dizia mais ou menos assim: "aqui estação tal, não consegui contactá-lo pelo rádio, você está sobre a localidade X".
Logo em seguida, diminuindo a altitude, com a luz da ponta de uma das asas veio a resposta: - "Obrigado, amigo."
Isto acontecido, o ruído do aparelho foi sumindo aos poucos, até desaparecer.
Preocupado, o cidadão da pequena localidade ligou, telefonicamente, para Londrina.
Fez contato com um amigo, a quem contou a ocorrência, e pediu que ele se comunicasse com o aeroporto e verificasse se a torre de controle tinha alguma informação.
Logo depois veio a resposta. O avião havia pousado há pouco tempo, estando tudo na mais perfeita ordem, graças a sua intervenção proverbial. O comandante do avião tinha contado que havia se perdido, pelas razões que explicou aos técnicos do aeroporto. Não sabendo onde estava, pois os sistemas de orientação e rádio tinham se avariado, lutava, ainda, com a intensa neblina e já imaginava a necessidade de um pouso de emergência.
Por isso começou a "rodar", lá nas alturas, para gastar combustível.
De repente, a salvação!
Um cidadão "cabeça-fria" livrara aquele aparelho de uma provável catástrofe.
O comandante, por telefone procurou o "salvador" para agradecer: - "Muito obrigado, engenheiro Leoni Polatti, em meu nome, da tripulação e dos passageiros".
Este fato teve, na época, muita repercussão na imprensa nacional.
Serviu para divulgar, e muito, a cidade, ainda menina-moça, que era Apucarana.

João Carlos Calvo, engenheiro civil

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Histórias do Paraná - O Paraná é fogo

Histórias do Paraná - O Paraná é fogo

O Paraná é fogo
Valêncio Xavier

Entre agosto e setembro de 1963, o Paraná pegou fogo.
Quase 650 mil alqueires de suas florestas, matas, plantações e pastagens foram consumidas pelas chamas, atingindo 128 municípios, numa área de cerca de 21 mil quilômetros quadrados.
Casas, fazendas, sítios, silos, galpões, paióis, estábulos e outras construções foram destruídas pelo fogo.
Um número incalculado até hoje de cabeças de gado, animais de criação e animais selvagens morrendo queimados.
Oficialmente, 964 pessoas ficaram feridas e 110 morreram.
Mas, ninguém sabe o numero exato de vítimas humanas deste flagelo que foi um dos maiores incêndios registrados no mundo, nos últimos anos, considerando-se a concentração de área, nas palavras de Merle Lowden, diretor da Divisão do Controle de Incêndios, do Ministério de Agricultura dos Estados Unidos, que veio dar ajuda no combate ao, aparentemente, incontrolável, incêndio do Paraná, em 1963.
O ano de 1963 não vinha sendo bom para o Paraná: seca inclemente no começo do ano, geada no inverno atingindo mais de 50% dos cafezais do Estado.
Para coroar a ano trágico, nos meados de setembro surge o terceiro cavaleiro do Apocalipse: um incêndio florestal que, por vezes, galopava a quase 20 quilômetros por hora.
O grande incêndio teria começado pelo cômodo costume brasileiro das queimadas para limpeza da terra para o plantio. A seca ajudou, e a falta de preparo para combater incêndios florestais fez o resto.
O fogo se propagava por todo o Estado.
Curitiba, a capital, tinha o céu coberto de cinzas que faziam o dia escurecer mais cedo.
Surgem os boatos: o grande incêndio teria começado quando o ex-governador Moyses Lupion pôs fogo na reserva de pinheiros de uma fábrica de papel em Arapoti para receber o seguro. A região foi uma das mais duramente atingidas, só ali morreram 27 pessoas. O excelente fotógrafo Rodolpho Goerke, de Jaguariaíva, fez as chocantes fotos dos 8 cadáveres carbonizados dos operários da Matarazzo que lutavam contra o incêndio.
Essas fotos serviram para acabar com outros boatos que diziam não existir incêndio nenhum, que tudo era invenção do então governador Ney Braga para conseguir dinheiro do Estado: o presidente João Goulart mandou auxílio imediato. Técnicos americanos em combate a incêndios florestais vieram em cima da hora.
Da esquadra americana, em manobras na costa brasileira, vieram medicamentos, alimentos e roupas para os flagelados. O governo Kennedy, através da Aliança para o Progresso, mandou um cíinheirão para a reconstrução do Estado. Vários países mandaram dinheiro, roupas e mantimentos para os flagelados, até a União Soviética.
O grande incêndio só acabou com a chegada das chuvas, no final de setembro.
As mesmas chuvas que tanto estrago fizeram ao Paraná neste setembro e outubro 30 anos depois.
Se os auxílios chegaram na mão dos flagelados? Muito tempo depois a gente via, na casa de políticos, latonas de leite em pó -novidade na época - com os dizeres "Doação do Povo Americano", ou escritas em russo.
Isso em plena Guerra Fria.

Valênáo Xavier, escritor e historiador.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Histórias do Paraná - O Padre Camargo

Histórias do Paraná - O Padre Camargo

O Padre Camargo
Luiz Romaguera Netto

Em 1918, nasceu na Freguesia da Vila Nova da Palmeira, José Antônio de Camargo e Araújo, filho de Antônio Joaquim de Camargo e Mathildes Umbelina da Glória, o velho Camargo, como era conhecido seu pai, figura de destaque tanto na Palmeira como em Guarapuava, onde foi um dos pioneiros.
A época era de lutas, conquistas, desbravamento de sertões; tudo por ser construído neste nosso Paraná. Seus irmãos e irmãs empenhados como seus pais nessa labuta diária, casaram-se e foram constituir suas famílias bem longe do rincão natal, uns em Palmas, outros em Guarapuava.
Ele e sua irmã Anna Maria, ficaram na Palmeira.
Já era moço, quando seu irmão mais velho, Antônio de Sá Camargo (mais tarde Visconde de Guarapuava) propôs a seus pais que fosse enviado a São Paulo para estudar, de vez que todos os outros não tiveram essa oportunidade, sendo que ele demonstrava pendores pela vida eclesiástica.
Os anos se passaram e, finalmente, em 8 de dezembro de 1848, assume a Paróquia da Freguesia o padre Camargo, coroando de êxito todas as expectativas da família, que queria ver o filho e irmão à frente da igreja. A alegria foi imensa!
A vida corria normalmente, quando, um belo domingo, ao oficiar a santa missa, notou linda menina moça, desconhecida de todos da cidade.
A "fraülein" de pele branca, cabelo loiro quase dourado, da cor da palha do müho, parecia uma santa. A menina moça despertou dentro dele o desejo, acendendo a paixão.
Assim, soube, desde a primeira vez que a viu, que o amor tinha lhe tocado, mexido com o seu mais íntimo sentimento.
Gertrudes (esse era o seu nome), com o coração batendo apressadamente, dirigiu-se ao confessionário, sem saber exatamente o que fazer.
Daí para frente, contam que o confessionário, ficou sendo o ponto de encontro dos dois.
Foi assim que conheceu a intenção dos pais dela em realizar o seu casamento com um dos rapazes da Colônia de São Leopoldo — RS, filho de amigos e companheiros desde a viagem da Alemanha para o Brasil.
Como ela não queria isto, tinha vindo com um tio e dois de seus irmãos para a 5a Província de São Paulo.
O noivo, não se conformando, veio atrás da prometida para oficializar o enlace.
Alguns dias antes do casamento, ela foi ao confessionário, onde declarou o seu amor pelo padre.
Combinaram então a fuga para viverem juntos.
Ele vacilou... e, na hora H, celebrou o casamento de Gertrudes com o outro, iniciando-se uma grande festa com um baile.
José Antônio com o coração partido e vendo a tristeza da noiva, ao sair lhe confidenciou que, quando todos estivessem entretidos com o baile, viria lhe buscar.
À noite, montado em seu cavalo, aproxima-se da casa. Lá estava Gertrudes a lhe esperar.
Dando-lhe a mão, ajuda-a a montar em sua garupa e, cobrindo-lhe com uma longa capa, partem a galope afastando-se da casa, ao encontro de seus destinos.
Esta história — que parece irreal - aconteceu no ano de 1849 na Freguesia da Palmeira e foi o início de uma grande parte da família Camargo no Paraná. Quanto a José Antônio Camargo, depois de largar a batina que envergara por seis anos e constituir uma família, foi por onze anos presidente da Câmara de Vereadores (equivalente a prefeito) de Palmeiras e outros 18 anos deputado provincial.

Luiz Romaguera Netto, advogado e membro do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Paraná

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Da cor do pecado

Histórias do Paraná - Da cor do pecado

Da cor do pecado
Luiz Groff

Era 1943 e a qualquer momento aqueles bravos rapazes do CPOR poderiam embarcar para a guerra.
A iminência do embarque era pura neura, mas o cinema ajudava a criar o clima. E como os rapazes dos filmes dissipavam a tensão dançando swing, os de Curitiba, dançavam bolero. Lá, com as namoradas, aqui com as putas.
Rua Mucicy, número 1000. Na esquina da Augusto Stelfeld, onde a ladeira acentua, lado esquerdo, que do direito era o muro das freiras do Divina Providência, ficava a Casa da Ginette.
Nos boleros arrombava Tedda Diamant, que chamava todo mundo de "mon Cherri" e se dizia francesa, mas era da Rondinha.
Fazia-se respeitar, no máximo acompanhava um champagne, mas não fazia mixê, só dava pro cafetão, o gringo do bandoneon, duplamente argentino, pelo nascimento e pelos cabelos nas têmporas.
Característica daquela época de moralismo e repressão, o bordel era estritamente familiar.
Dançar, só à distância, um mestre sala impedindo o encoxe.
No quarto, só com luz apagada e nada de beijo na boca. E se o "instante" se prolongava, lá vinha a indefectível batida na porta: - Jandira, pelo que pagou, este cara não está pensando que vai passar a noite, né?
Felizmente a tesão da rapaziada era feroz e, apesar da pressão, ninguém brochava, nem acabava no analista.
No meio da turma, destacava-se Estanislau Tomashek, dentista, que, curso mais curto, já trabalhava enquanto os outros ainda estudavam.
Competente, trabalhador, simpático, alto, louro, olhos azuis, seria um bom partido não fossem dois detalhes.
Era polaco e era dentista.
Na turma, era popular, já que sempre tinha dinheiro para pagar as contas.
Só se dava mal quando tentava namorar uma irmã de um amigo, porque daí pintava preconceito, levava um chute e a menina era mandada passar uns tempos no Rio, para esfriar a cabeça, porque Tomashek, apesar de ser polaco e dentista, era atraente, deixava saudades...
Naufragado na tristeza, Tomashek, a cada desilusão, se internava na Ginette, onde, carteira recheada, era rei.
Monopolizava a bela Paulette, irmã de Ginette, por parte dos "ettes", enchia os cornos de champagne e só saía na hora da casa
fechar.
E tinha de, porque os finalistas do começo da noite já punham olhos de lobo para cima de Paulette, apenas esperando o polaco ir embora, para traçar a caça.
Uma noite, nas adiantadas da matina, não agüentando mais o prepuxo, pois tinha canal bem cedo, explodiu:
- Paulette, vou deixar esta vida.
Quer casar comigo?
- Mais, non! Impossible! Você é dentista e polaco!

Luiz Groff, engenheiro e cronista

terça-feira, 12 de julho de 2016

Histórias do Paraná - O gol contra do plantão

Histórias do Paraná - O gol contra do plantão

O gol contra do plantão
Ernani Buchmann

Nenhum meio de comunicação tem histórias como o rádio, este veículo fantástico que é som e imaginação ao mesmo tempo.
Histórias de todos os gêneros, mas principalmente comédia. E dentro da comédia o rádio esportivo é insuperável. Não é para menos: o locutor esportivo é um improvisador, um criador de imagens, um animador de auditório, um mestre do suspense.
Certa vez, na Rádio Clube Paranaense, o plantão da equipe de esportes pediu demissão.
Cansado do atraso no salário, de ser obrigado a trabalhar fechado num estúdio nas tardes de domingo, do pouco reconhecimento da torcida - afinal, o plantão é uma voz sem rosto - o sujeito resolveu ir embora. E a equipe de Airton Cordeiro, líder de audiência, não sabia quem poderia cumprir a função.
Os bons plantões estavam todos empregados.
A solução foi chamar um rapaz alto, dono de voz possante, recém-chegado de São João do Caiuá.
- Marassi, você quer ser plantão esportivo? Perguntou o chefe da equipe.
- Olha, eu não entendo nada de futebol, mas se for para ganhar algum, por que não?
Airton Cordeiro acertou alguns caraminguás a mais para que o aprendiz de locutor fizesse o papel de plantão. E passou a anunciar a estréia de mais aquela revelação do rádio paranaense.
Domingo o campeonato teria uma infinidade de jogos.
Em Paranaguá jogariam Seleto local e União Bandeirantes.
No Alto da Glória, um Atletiba de casa cheia.
E chegou o dia.
No estádio a audiência da Rádio Clube era quase total. O sinal eletrônico da rádio era ouvido até por quem tinha esquecido o radinho. E o locutor não parava de anunciar a iminente entrada no ar do plantão.
Até que ouviu-se o vozeirão:
- Airton!
A torcida emudeceu.
Os jogadores pararam. O árbitro engoliu o apito.
As moscas pousaram.
Os picolés deixaram de derreter. E Airton respondeu:
- E a estréia do novo plantão da Rádio Clube, Carlos Marassi, a revelação que veio de longe.
Fala, Marassi!
Então a voz, aquela potente voz, proclamou, solene, pelas ondas longas, médias e curtas da Rádio Clube:
- Em Seleto: Paranaguá 1, União 0.

Ernani Buchmann, publicitário

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Histórias do Paraná - A visita da titia

Histórias do Paraná - A visita da titia

A visita da titia
Domingos Pellegrini

Quando ainda se cruzava o Tibagi de balsa, um casalzinho mudou para Londrina, ele pobre e ela de família paulista
quatrocentona — que achava morte em vida viver naquele sertão.
Então a tia solteirona resolveu dar uma olhada, numa visita surpresa.
Era do tipo que levava malas, maletas, bolsa, frasqueira, sombrinha, chapéu.
Saiu de Ourinhos, última etapa da viagem, diretamente do cabeleireiro para a jardineira.
Dali à Londrina era um pulo, disseram, e ela queria chegar como uma flor naquele fim de mundo, pronta até para levar a sobrinha de volta à civilização.
Imagine, viver numa cidadezinha no meio da mata!
Em 35 a jardineira ainda era aberta dos lados, com estribos, e as malas iam na capota.
Ela achou aquilo um horror.
Depois, quando o poeirão vermelho fechou a estrada de não se ver nem o motorista, ela mandou parar, disse que ia descer. O motorista parou e já ia tirando as malas, ela olhou a mata e resolveu continuar. O penteado ia endurecendo e avermelhando de poeira, como a folhagem da beira da estrada.
No Tibagi, tiveram de esperar a balsa e ela foi se lavar na beirada, caiu no rio, bem onde os pescadores limpavam peixe, num lodo de escamas e tripas.
Lavou-se como pode numa casa de caboclo, trocou de roupas e atravessou o rio fedendo peixe mas conformada: nada mais podia acontecer de ruim depois disso. Aí caiu um toró e, faltando tão pouco que viam a fumaça de Londrina, teve de ajudar a empurrar a jardineira. Não queria, mas o motorista falou: "Madame, ou todo mundo ajuda ou fica todo mundo."
Empurrando caiu de frente no barro vermelho, grudento, pediu pra morrer, mas o pior estava por vir: a jardineira atolou de vez e teriam de alcançar Londrina a pé. Ela falou que jamais ia abandonar as malas de estimação, e um sujeito barbudo, mais grosso que toco de açougue, disse que logo ia anoitecer e ela não conhecia os mosquitos dali. O homem se ofereceu para levar alguma coisa, ela deu a maleta, foi com a frasqueira.
Entre atoleiros e enxurradas ela foi vendo que ele até que era gentil, dava a mão para ajudar, não ria quando ele caía.
Deu sede, ele mostrou o caminho duma mina de água limpa e gelada.
Depois cortou uma palmeira a facão, ela falou que judiação.
Ele tirou o palmito da palmeira, tirou o miolo do palmito e ofereceu, ela provou, era uma delícia.
Fica melhor com mel, ele falou enfiando uma caneca num toco, tirou cheia de mel de jatai.
Mas o melhor mesmo é isto aqui - ele apresentou um cantil de uísque, que os ingleses da Companhia de Terras mandavam vir da Escócia.
Depois do terceiro gole ela disse que, afinal, a tal terra-vermelha também tinha algumas coisas boas. E você ainda não viu nada, disse ele, abraçando para ela não cair de novo.
Chegariam a Londrina com o cantil vazio, abraçados e cantando uma modinha.
No dia seguinte, quando contaram, ela quis morrer de vergonha mas nem teve tempo: ele já estava na porta com duas alianças de noivado e um caminhão carregado de sacas.
Disse que estava indo vender café, tinha aproveitado para perguntar se ela não queria casar. Não tenho muita coisa, ele falou, mas o que interessa mesmo você já conheceu ontem, não é?
Casaram em um mês, tiveram um nenê de oito meses; e ela, com seus finos modos, faria escola entre as senhoras e moças da Londrina pioneira. E sempre diria que terra boa, mesmo, é onde a gente se acha, sabe?

Domingos Pellegrini, escritor

domingo, 10 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Lousa de ardósia

Histórias do Paraná - Lousa de ardósia

Lousa de ardósia
Lourdes Lacerda Suplicy

Lapa.
Colégio São José. 1929
Com a irmã Rita, professora das primeiras letras, meus colegas e eu aprendemos a ler em apenas três meses. A ler e a temer o inferno.
Para dar mais ênfase às suas histórias sobre o diabo, a freira ingênua fazia uma pantomima aterradora: arregalava os olhos, erguia a tampa da sua mesa e, enquanto deixava cair, passava uma rasteira na cadeira e corria para a porta com estardalhaço.
Assim, a imagem do diabo perturbou o nosso sono até a idade adulta.
Mas a alegria voltava quando atravessávamos a praça da Matriz com os nossos uniformes de sarja azul-marinho, saia pregueada, blusa com cabeção e reluzentes sapatos de verniz preto.
Desfilávamos sempre em duplas: nas paradas de 7 de setembro, a caminho da Igreja, para entrar em aula.
Como católica apostólica lapeana, naquela velha Igreja recebi os ensinamentos que me amparam até hoje.
Naquele tempo, o cheiro de incenso e a sineta na hora da elevação despertavam mais temor do que fé; mas a fé era simples, provinciana e sem complicações.
Assim como escrevíamos na lousa de ardósia, emoldurada de madeira com lápis especial e apagávamos tudo com o trapo que pendia do barbante, do mesmo modo muitas lembranças que pareciam marcadas para sempre desapareceram na lousa do tempo.
"Está no mundo da lua, menina?"
Curitiba.
Colégio Cajuru.
1938.
Em instantes de devaneio, a menina magra e esverdeada que eu era aos onze anos se sobrepõe à adulta.
Por vezes prevalece uma outra imagem, a da adolescente rósea e gordinha que voltou para casa após um ano de internato do Colégio Cajuru.
Matriculada sob o número 177, todo o meu enxoval comprado na Maison Blanche levou esta marca.
Entrei no Colégio acompanhada por meu pai e minha mãe. Já no parlatório pensei em fugir, quando uma freira de hábito preto (que o Concilio Vaticano II levou para sempre) se acercou de nós.
Quando um sino estridente tocou fui deixada ali e, a partir daquele momento, o sino passou a regulamentar a minha vida ao lado das colegas: hora de levantar, de rezar, de estudar, de comer, de brincar. O sino também chamava as freiras, identificadas por um código de batidas.
Como sino francês é feminino (la cloche), o sino do Cajuru foi batizado com nome de mulher: Geraldine, Josephine, Albertine...
A diretora, irmã Júlia, pequena, enérgica, de olhar penetrante, repetia: "Mes enfants, la politesse est la règle de bien vivre et bien faire toutes les choses".
Assistíamos missa diariamente e só saíamos uma vez por mês, nós as internas, quando nos comportávamos bem.
Nos três grandes dormitórios éramos agrupadas por idade: pequenas, médias e grandes.
Oitenta camas em cada dormitório.
Deitada, olhando o teto, as luzes que por vezes iluminavam a escuridão eram, para mim, reflexos de um trem partindo e me levando para a Lapa. A gente sempre tem um trem nas lembranças, um trem que chega ou que vai, que apita longe.
Os trens da infância.
Um dia, não resisti e fugi. A pé. Com algumas colegas percorremos quilometros.
Logo fomos "devolvidas" para o Colégio e, como castigo, ficamos dois meses sem sair.
Em uma carta que escrevi para casa, filosofei: ‘‘Possivelmente nossos pensamentos se encontraram pelos caminhos da saudade.
Veio a carta de papai e lá foi a minha". Hoje meu pensamento também se encontra pelos caminhos da saudade, lembro pequenos detalhes: a sala de aula, a carteira e a voz da irmã Eucaristia: "Lourdes, attention!"
Vó Ude! Vó Ude!
A voz de um neto, urgente e imperiosa, me chama ao ano de 1993.
Lourdes L Suplicy, avó e dona de casa

sábado, 9 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Tragédia humana

Histórias do Paraná - Tragédia humana

Tragédia humana
Túlio Vargas

Impossibilitados de invadir São Paulo, rumo ao Rio de Janeiro, para depor Floriano Peixoto, durante a Revolução Federalista, os maragatos comandados por Gumercindo Saraiva viram-se obrigados a recuar, em face dos insucessos da revolta naval e de divergência internas.
Retiraram as tropas, em três colunas, para o Rio Grande do Sul, em busca de refúgio na vizinha República do Uruguai.
Cessada a ocupação do Paraná, em 1894, as forças legalistas, vindas de Itararé, retomaram o poder, reassumindo o governo do Estado o Dr. Vicente Machado.
Porém, mandavam os militares.
Instalou-se um regime de terror.
As prisões regorgitavam de simpatizantes da causa de federalistas.
Fuzilamentos sucediam-se na calada da noite.
Os que não fugiram, viveram o suplício da vindita. O martírio de maior repercussão deu-se no quilômetro 65 da Serra do Mar, quando o Barão do Serro Azul e seus companheiros Balbino Carneiro de Mendonça; Presciliano S. Correia, José Lourenço Schleder, José Joaquim Ferreira de Moura e Lourenço Rodrigo de Mattos Guedes foram executados friamente, na noite de 20 de maio. O medo de represália era tanto que os cadáveres permaneceram insepultos por alguns dias.
Serro azul, o mais importante deles, fora obrigado a prestar colaboração aos federalistas para evitar o saque da cidade de Curitiba.
Outros, como Presciliano, Mattos Guedes e Balbino oferecem apoio ostensivo a revolução.
Todavia, Schleder e José Joaquim eram modestos funcionários da Delegacia Fiscal.
Simples burocratas.
Quando a cidade foi ocupada e instalou-se o governo revolucionário, receberam ordens do governador nomeado, Menezes Dória, de manter a repartição aberta e cumprir ordens. Não lhes deu alternativa: Obedecer ou morrer.
Limitaram-se a praticar os atos de praxe, preservar o arquivo do tesouro e proceder os pagamentos exigidos. Não escaparam, por isso, à sanha dos vencedores.
José Joaquim, por certo, pagou pelo entusiasmo das filhas Albertina ejúüa que se incorporaram às tropas invasoras na condição de enfermeiras.
Como exímias voluntárias, cuidavam dos feridos e consolavam os aflitos, ganhando com esse gesto a gratidão dos revolucionários.
Jovens e idealistas, entendiam estar prestando serviços assinalados à causa da liberdade contra a opressão do governo florianista, cuja legitimidade os partidos da oposição contestavam.
A execução de José Joaquim foi o mais cruel possível.
Na caçada aos maragatos a lei convertera-se em arbítrio dos chefes, as autoridades em odientos sátrapas, as garantias individuais em meras ficções, a ordem em desenfreado abuso. O prisioneiro, em plena crise de diabetes, ardia em febre quando foi recolhido do quartel do 17° Batalhão de Infantaria, para a marcha forçada até a estação de estrada de ferro.
Mal podia levantar-se.
Seus companheiros, embora desconfiados da alegada viagem até Paranaguá àquelas horas mortas, ainda assim pareciam confiantes.
Ao descerem a rua São Francisco todos se detêm.
José Joaquim não suporta o trajeto e desmaia.
Levam-no de volta ao quartel, mas o comandante da escolta ainda recomenda aos gritos: "Conduzam-no de carro à estação, sem falta!"
A íntima convicção de inocência infundia-lhes coragem.
Poderiam enfrentar, sem receio, os juizes e leis da República.
Schelder apalpava nos bolsos copiosa documentação.
Nem José Joaquim, moribundo, nem o Barão, nem
Presciüano, enfim, nenhum deles, em sã consciência, poderia esperar o pior.
Estavam enganados.
Nenhum sobreviveu à carnificina do km 65.
As filhas de José Joaquim, atônitas e sofridas passaram a visitar, periodicamente, o local da tragédia,
em ato de contribuição filial.
Locomoviam-se num vagonete alugado da Estrada de Ferro.
Distribuíam flores e lágrimas.
Numa dessas idas e vindas, como se apenas um drama não bastasse, Albertina morreu tragicamente.
Seus cabelos soltos e longos prenderam-se nas rodas do vagonete.
Foi horrível. A outra irmã, Júlia, faleceu com avançada idade.

Túlio Vargas, ex-deputado e membro da Academia Paranaense de Letras

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Histórias do Paraná - A.B.C. dos "Sem-Terra" (II)

Histórias do Paraná - A.B.C. dos "Sem-Terra" (II)

A.B.C. dos "Sem-Terra" (II)
Samuel Guimarães da Costa

Reproduzimos abaixo o A.B.C. de autoria de Julio Alves Machado, recolhido em 1940 no Norte do Paraná por Samuel Guimarães da Costa e publicado pela primeira vez na revista "O Livro", de Curitiba, em 1947:

A
A.B.C. do povo pobre que reside no sertão procurando um meio nobre de exclamar sua razão
B
Brademos humildemente ao governo Brasileiro
- um pobre povo obediente seus patrícios verdadeiros
C
Compadecei-vos de nós, nosso ilustre Presidente, por que recorrer a vós um pobre povo obediente?
D
Diremos todos contentes sendo de vós protegidos Viva o nosso Presidente Viva os Estados Unidos!
E
Este é o povo do sertão que fala neste papel e que pede proteção neste momento cruel!
F
Fomos nós os que fizemos nesta mata um picadão e do Governo requeremos da Bufadeira ao Rio Bom
G
Garantindo a nós o mapa uma zona nacional este assunto não escapa de uma razão especial
H
Houve vários requerimentos dos primeiros habitante
que prova ter bom intento o mateiro vigilante
I
Intimado pelo juiz a tornar a requerer todos fazem o que ele diz sem palavras lhe dizer
J
Jamais nós vamos pensar que pertença a uma fazenda, que um juiz pode enganar quanto mais fazer contenda
K
Ker o povo ver o certo seu estado reclamar todos assinam a descoberto sem a ninguém ameaçar
L
Lá assim o temos feito humilde e também ordeiro cumprindo o nosso dever de bom filho brasileiro
M
Muitos estão sem destino sem saber para onde vão sem ofícios e sem ensino e sem apoio do sertão
N
Nossa pátria é brasileira ninguém nos pode negar, portando, em nossa bandeira devemos ter um lugar
O
Ó Pátria! O Brasil querido! não siga errado teu trilho sendo o pobre desvalido desprezas teu próprio filho!
P
Pobreza não é defeito nem todos podem ser nobres e o calo é o mais lindo enfeito que existe na mão do podre
Q
Quem jamais viu o progresso em qualquer modo de empresa que possa ter bom sucesso sem os braços da pobreza?
R
Rico não vem no sertão se o sertão ficar tapera há de ser casa de leão ou de qualquer outra fera
S
Saudosa Pátria querida! não me negues teu torrão que por ti dou minha vida e o meu próprio coração
T
Todos nós temos esperança que havemos de ser valido da mais saudosa lembrança de um homem de bom sentido
u
Um homem querendo ser de Deus e todos valido fazei por favorecer que há de ser favorecido
V
Vitorioso será o filho que for humilde e obediente e seguir certo no trilho que traçar seu Presidente
X
Xorando o pobre mateiro humilde vem reclamar ao seu chefe brasileiro
- quem lhe pode consolar
Z
Zombar da lei não queremos nem tão pouco repelir conceda-nos onde moremos com prazo de restituir

Samuel Guimarães da Costa, jornalista e escritor

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Histórias do Paraná - A. B. C. dos "Sem Terra"' (I)

Histórias do Paraná - A. B. C. dos "Sem Terra"' (I)

A. B. C. dos "Sem Terra"' (I)
Samuel Guimarães da Costa
Alguém hoje pode acreditar que, há mais de 50 anos, no Paraná, quando cerca de dois terços de seu território ainda não estavam economicamente ocupados, já o clamor dos "sem-terra" se fazia ouvir junto das mais altas autoridades do País?
Pois, em verdade vos digo que isso aconteceu, tendo o clamor em forma de requerimento coletivo partido de um punhado de caboclos tangidos para o interior dos sertões o Norte do Paraná pela frente de ocupação agrícola que a hoje célebre empresa inglesa de colonização e estrada de ferro promovia na década dos anos 30 na região de Londrina. E o curioso é que o requerimento dos "sem-terra" fora feito em versos, em forma de A.B.C., recolhido em 1940 - portanto, há exatamente 53 anos — de seu verdadeiro autor, o ex-sertanejo e repentista Júlio Alves Machado, pessoalmente por este jornalista que aqui vos fala, então com vinte anos de idade, na mais sensacional reportagem que já tenha realizado em toda sua vida profissional.
Com o correr do tempo ela se agiganta na lembrança.

De fato, em 1940, seis anos após a criação do município de Londrina, contratamos naquela cidade com o IBGE o recenseamento da população compreendida entre os Rios Paranapanema, Paraná e Ivaí, onde hoje estão mais de cinqüenta municípios do chamado Nordeste, também conhecido Norte Novíssimo. A região ainda estava coberta de matas virgens, cujas trilhas precárias percorremos a cavalo durante dois meses, acompanhados de guia experimentado posto à nossa disposição pelo saudoso "capitão" Teimo Ribeiro, que administrava em nome do Governo Manoel Ribas a ex-Fazenda Brasileira (hoje Paranavaí). Pouca gente sabe que essa fazenda, antes pertencente à concessão Braviaco, tinha como um de seus concessionários o gaúcho Lindolfo Collor, entre outros, ao tempo das grandes concessões de terras devolutas feitas durante a I República e canceladas após a Revolução de 1930. Hoje, uma viagem a cavalo pelos sertões só é possível na Amazônia — e olhe lá! -vez o que o Nordeste paranaense, onde o solo compõe-se de arenito do caiuá, foi devastado e está em vias de desertificação. Não era assim quando o percorremos em 1940 em que a população cabocla recenseada, extremamente escassa e dispersa, vivia à beira dos rios em choças de palmito, como animais sujos e assustados, a se deslocarem continuamente à medida que indícios de abertura de estradas e propriedades agrícolas, denunciando a civilização, deles se aproximavam.

O autor do A.B.C., já citado, com quem recolhemos essa preciosidade, já idoso, grisalho e barbudo,
fora dos poucos que na época prosperara, possuindo um sitio nos arredores de Mandaguari.
O material recolhido, como se sabe, é ainda muito usado nos folclores do Nordeste brasileiro,
como antiga forma do cancioneiro popular, geralmente anônimo, herdado de Portugal e Espanha ao tempo da Colônia.
A propósito, diz Luiz da Câmara Cascudo, um estudioso do assunto: "Todos os famosos cantadores timbravam em escrever um A.B.C. e raro seria o fato anormal, digno de lembrança, sem as honras do A.B.C."
Pela simples leitura da peça que chamei de "A.B.C. dos sem-terra" verifica-se o que os requerentes expunham e pleiteavam, ao receberem ordens das autoridades estaduais para deixar as terras que ocupava numa região próxima à Serra do Cadeado, hoje cortada pela chamada Rodovia do Café, a 376, e pela Estrada de Ferro Central do Paraná, banhada pelos rios Bom e Bufadeira, por sinal citados no A.B.C. dejuüo Alves Machado.
Como nosso espaço é reduzido, dividimos esta crônica em duas partes, a fim de que o leitor possa apreciar na próxima edição, amanhã, o texto integral do A.B.C. aqui comentado.

Samuel Guimarães da Costa, jornalista e escritor

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Histórias do Paraná - O Itamarcrty e o quilômetro 65

Histórias do Paraná - O Itamarcrty e o quilômetro 65

O Itamarcrty e o quilômetro 65
Valério Hoerner Júnior

A construção do Palácio Itamaraty foi iniciada em 1851 na então chamada Rua Larga de São Joaquim, atual Marechal Floriano, no Rio de Janeiro.
De propriedade do primeiro barão desse nome, no batistério Francisco José da Rocha, situado quase na esquina do Campo de SantaAna, depois chamado da Aclamação e da Honra e hoje Praça da República, fora adquirido pelo recém instaurado governo republicano, em meados de dezembro de 1889, para servir de resistência ao chefe de governo.
Foi compra de porteira fechada, com tudo que havia dentro.
Somente em 1897, Prudente de Morais dali se retiraria para o Largo do Valdetaro no Bairro do Catete, Palácio Nova Friburgo, logo ficando este conhecido como Palácio do Catete e servindo para residência presidencial até 1960, quando da inauguração de Brasília porjuscelino Kubitschek.
O Dr. Rodrigo Otávio de Langaard Menezes (Campinas, SP, 1866 - Rio, 1944), jurista, escritor, diplomata, delegado brasileiro em inúmeras conferências internacionais, era em 1894, Procurador da República e foi convidado pelo presidente eleito para exercer o cargo de Secretário da Presidência.
De sorte que, no dia da posse, acompanhou Prudente de Morais ao Palácio presidencial — o Itamaraty.
Diz Rodrigo Otávio, pelas mãos de Gustavo Barroso em seu livro "História do Palácio Itamaraty", 1a e 2a edições em 1955 e 1968, que ao entrar identificaram lindas salas forradas de damasco, guarnecidas todas elas de ricos móveis de época, mas sem identidade alguma, marcas de uso ou coisas que valha. O único vestígio de vida encontrado fora, numa das salas dos fundos, um caixão aberto sobre belíssimo mosaico de madeira contendo jornais, papéis rasgados e um sem-números de garrafas de cerveja vazias... Tudo isso foi constatado pela multidão que, curiosa, assenhoriou-se do Palácio.
Inacreditável!
Conta então que, um dia, abrindo ali por simples curiosidade a gaveta do consolo de uma daquelas ricas salas, nela encontrou papelada em desordem, esquecida por certo quando da saída atabalhoada do Marechal Floriano Peixoto, antecessor do primeiro presidente civil da República.
Examinando-a, verificou tratar-se de preciosíssimos documentos, e, entre outros, justamente o inquérito militar sobre os fuzilamentos no Paraná, entre os quais o do Barão do Serro Azul, no Cadeado, quilometro 65 da ferrovia Paranaguá-Curitiba.
Sem demora, encaminhou-os ao Arquivo Nacional.
E, também sem mais delongas, sumiram todos os documentos enviados — e principalmente o inquérito -, tanto do Arquivo Nacional quanto do alcance público, pois nele, nessa cópia encontrada em 1894, recentíssima dos fatos e portanto ainda não manipulada, certamente estariam inseridas as provas sobre o mando do crime, este até hoje passível das mais exóticas e ingênuas conjecturas.

Valério Hoerner Junior é da Academia Paranaense de Letras.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Paixão no Boqueirão

Histórias do Paraná - Paixão no Boqueirão

Paixão no Boqueirão
Roberto Jose da Silva

Mãos no alambrado do estádio "Santanão", o velhinho olha na direção de um gol e chora.
Quando desembarcou ali no Boqueirão, há quarenta anos, aquele terreno de 10 mil metros servia de pasto natural para o gado.
João Santana, paranaense de Campo Largo, olhos amendoados que lhe valeram de cara o apelido de "Japonês", plantava tomates e hortaliças. Não ganhava nem para a sobrevivência.
Era um apaixonado por futebol, por isso resolveu unir o útil ao agradável e fundou o Caxias — nome sugerido por soldado amigo de um quartel da região.
Quatro décadas vivendo desta paixão.
Por isso Santana hoje chora.
Recordações invadem sua alma.
Um caderno gasto pelo tempo é folheado e as lágrimas rolam com mais intensidade.
Ali ele registrou, com letra redondinha, todos os resultados dos jogos desde a fundação do "seu" rubro-negro.
Dez títulos da suburbana de Curitiba.
Santana tomou posse, cercou o terreno, plantou grama, fez sua casa, dois filhos com sua "mãezinha", dona Cecília Camerato, e se transformou num dos personagens mais conhecidos do mais populoso bairro da capital do
Paraná. Tudo por causa do Caxias Futebol Clube, do qual foi jogador, presidente, diretor, tesoureiro e técnico do tipo durão.
Nunca precisou ir atrás de jogador ou pagar para que envergassem a gloriosa camisa do seu time.
Sempre gostou daqueles que, como ele, amavam o Caxias. "Jamanta" foi o que mais lhe tocou o coração.
Tanto que mais lágrimas rolam no rosto enrugado pelos 63 anos de vida.
Parrudão, zagueiro de "arrepiar", virou segurança do dono do time nos jogos mais esquentados.
"Jamanta" morreu novo, do coração. E a morte é uma sombra que Santana vem querendo afastar já faz um tempo.
Por causa de uma insuficiência renal que há quatro anos o obriga a fazer três hemodiálises semanais no Hospital Evangélico, João Santana, neste tempo, só faz mesmo recordar os bons e maus momentos do seu Caxias.
Certa vez o Rancho Alegre tirou o título do time na última partida.
Santana, inconformado com o vice, teve um ataque de ódio dentro do ônibus que levava a delegação de volta para a sua casa-sede do clube. Só não atirou pela janela o troféu porque, de joelhos, Dionha, um jogador amigo, implorou para
guardar a taça como recordação.
Há quatro anos o "Santanão" só é palco de partidas entre times que o alugam no final de semana.
Nada de Caxias. O time, com a doença do seu fundador e dono, teve que pedir licença na Federação.
Por isso João Santana chora ao mirar com o olhar perdido aquele campo de futebol.
Chora o choro de alguém que viveu o Caxias e só vai sorrir de novo quando vir o seu rubro-negro do outro lado do alambrado.

Roberto José da Silva, jornalista

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Histórias do Paraná - O Agiota

Histórias do Paraná - O Agiota

O Agiota
Luiz Cláudio Mehl

O cidadão que cobra juros por empréstimos de dinheiro certamente é um espécime em extinção no nosso país.
Neste Brasil dos nossos tempos ele não suportaria a concorrência das taxas oficiais, além de ser incapaz de suprir a voracidade dos governos, principais tomadores de recursos.
Esta no entanto não era a realidade dos anos cinqüenta.
Naquela época os agiotas dividiam-se entre aqueles que extorquiam, e os que alavancavam empresas e pessoas com dificuldades momentâneas.
A história que segue aconteceu em Imbituva.
Pequena cidade do interior do Paraná, hoje florescente produtora de malhas, naquela época sede de importantes indústrias beneficiadoras de madeira.
O agiota que atendia Imbituva vinha toda semana de Ponta Grossa, visitava os "clientes", de quem cobrava juros devidos e indevidos.
Ele estava entre os que extorquiam as pessoas.
Os rumores de protesto alcançaram os ouvidos atentos do "seu" Eduardo Sponholz, que viria a ser tronco de ilustres figuras do nosso Estado.
Ele era uma espécie de cacique local e pertencia ao velho PSD.
A sociedade Imbituvense estava revoltada com o agiota. E isto também aborrecia o político experiente.
Numa tarde, enquanto aguardava o ônibus de retorno para Ponta Grossa, o agiota recebeu um estranho convite para "prosear" com "seu" Eduardo.
Dirigiu-se então para a casa localizada em frente ao ponto de ônibus. A porta de entrada ficava sempre aberta e levava a um extenso corredor onde era colocada uma mesa com duas cadeiras.
Dali "seu" Eduardo assistia a todos que chegavam, e saiam da cidade.
A "prosa" durou mais de uma hora, tempo em que o velho líder não parou de reabastecer a cuia de chimarrão com água fervente. O tom amigável da conversa surpreendeu o agiota, que ao final embarcou no ônibus de regresso.
No dia seguinte, logo na chegada do primeiro ônibus, "seu" Eduardo correu ansioso na direção do motorista, perguntando:
- "Olá compadre! Como foi a viagem de ontem?"
O motorista respondeu irritado:
- "Por três vezes fui obrigado a parar o ônibus a pedido daquele agiota.
Ele corria para o mato, e voltava pálido.
Na quarta vez, ele
desembarcou no posto fiscal".
Matreiramente, "seu" Eduardo afastou-se, sem disfarçar o sorriso zombeteiro quando lembrava da erva espinheira santa, um poderoso laxativo misturado ao chimarrão.
Desde então há informações de que os juros cobrados em Imbituva não ultrapassaram níveis além do tolerável.

Luiz Cláudio Mehl, engenheiro civil.

domingo, 3 de julho de 2016

Histórias do Paraná - A gloriosa mas breve, existência de Tamanduá

Histórias do Paraná - A gloriosa mas breve, existência de Tamanduá

A gloriosa mas breve, existência de Tamanduá
Ernesto Carvalho

Tamanduá - mesmo com esse nome - poderia ter sido uma das maiores cidades do Paraná, senão a maior, quem sabe até a Capital.
Ou então Iguatemi, São Bento do Tibagi, Nova Vila do Ivaí e Conceição do Caiacanga.
Vilas ou vilarejos cujos nomes hoje só se encontram em raros livros de história, tiveram em comum a relativa importância na segunda metade do século XVIII e o gradativo desaparecimento a partir de 1820.
Porque estranhos desígnios essas comunidades desapareceram é uma questão que nem sempre os livros de história conseguem esclarecer.
Mais que desaparecer, o que sucedeu a essas comunidades é que estacionaram, deixaram de crescer, sustentava o falecido historiador Davi Carneiro, fixado no óbvio efeito e também sem conseguir atinar com a causa.
De todas, Tamanduá teve a história mais curiosa.
Ela nasceu à mesma época em que Curitiba também nascia, como sede de uma fazenda nos campos do segundo planalto, a coisa de uma légua da atual Palmeira. E não foi pouca coisa, não.
Além de Curitiba, ensina Davi Carneiro em sua "História da Palmeira", em meados do século XVIII apenas quatro pontos tinham importância e se eqüivaliam em toda a vasta região dos campos gerais: Lapa, São José dos Pinhais, Castro e Tamanduá.
Por essa época, Tamanduá era uma cidade em formação, já estava constituída em freguesia, tinha tudo para continuar crescendo e vir a ser uma bela cidade.
Possuía uma simpática e atraente capela colonial devotada a Nossa Senhora da Conceição, várias famílias abastadas e seus agregados já moravam ali, tinha uma força miliciana e, de quando em quando, assistia à partida de grupos de aventureiros armados rumo à conquista do Oeste misterioso.
Tamanduá possuía, inclusive, um dos dois únicos conventos de Carmelitas de toda a comarca - o outro ficava em Santo Antônio do Capão Alto, que também poderia ter se transformado em cidade e não foi além de fazenda, a Fazenda Capão Alto, perto de Castro.
Quando passou por ali, em 1820, Tamandua chamou a atenção do naturalista francês Saint Hilaire, que arriscou um palpite, em seus escritos, prevendo que a cidade cresceria muito dali para diante.
Foi um palpite mais que infeliz.
Precisamente por essa época, começou a morte lenta de Tamanduá e o crescimento de um lugarejo vizinho de uma légua, que poucos anos antes não passava de um curral de vacas de um sítio abandonado.
Era a Freguesia Nova, fundada em 1817, que breve sobrepujaria Tamanduá com o nome de Palmeira.
Em 8 de dezembro de 1837, a imagem de Nossa senhora da Conceição foi transferida de Tamanduá para a igreja de Palmeira.
Era o golpe de misericórdia em Tamanduá, que definhou o que lhe restava definhar até se transformar em algumas ruínas. Já Palmeira, seria nos 50 anos seguintes a cidade mais importante de todo o interior do Paraná.
O que determinou a morte de Tamanduá e o surgimento, da noite para o dia e quase no mesmo lugar, da importante Palmeira? O destino, quem sabe.
Mas insondáveis são os mistérios do destino que decide, sem qualquer razão aparente, essa troca de papéis entre duas comunidades.

Ernesto Carvalho, radialista e pesquisador

sábado, 2 de julho de 2016

Histórias do Paraná - Hora da verdade

Histórias do Paraná - Hora da verdade

Hora da verdade
Francisco Brito de Lacerda

João Maria cuidava de suas irmãs, uma de sete, a outra de nove anos.
Os pais estavam na roça, quebrando milho.
O menino tinha muito medo de Nicola, um andarilho que costumava entrar ali de manhã, quase sempre embriagado, falando bobagens.
Quando isso acontecia, o pai longe, só a mãe em casa, passando a roupa ou mexendo o tacho, Nicola obrigava a pobre mulher a preparar-lhe cigarros.
Exigia o palheiro acesso.
Pela lentidão no preparo do cigarro, só de nervosa com o jeito dele, a mãe ouvia ameaças, palavrões.
Deitado no único quarto da casa, João Maria amanhecera com febre, tremelicante.
Nem podia cochilar direito.
Imbuído da condição de hominho da casa, recomendara às irmãs que não fossem lá fora, não abrissem a porta a ninguém.
Posta em toda a extensão da porta, uma tranca vedava o acesso de visitas.
Ainda assim, o menino não se sentia seguro.
Achando-se a morada na boca do mato, lugar ermo, em caso de precisão não havia como pedir socorro.
A fim de espiar se alguém chegava, duas vezes João Maria ficou em pé na cama, batendo o queixo.
Unindo os dedos da mão direita, esfregava-os no vidro da janelinha, embaçado.
Como acudir a febre, que subia demais? A mãe lhe deixara uma cápsula das três misturas.
Para poder engolir o remédio, pediu à irmã menor que lhe trouxesse uma caneca de chá bem quente. Só assim sossegou. A febre foi baixando.
Veio o sono.
Acordou com barulho de vozes, duvidoso se era sonho ou algo verdadeiro. O ruído vinha do outro cômodo.
Uma das meninas chorava.
Chorava de medo.
Levantou-se João Maria para apurar a ocorrência.
Sentado, Nicola prendia a de nove anos pelo vestidinho. Pôr a menina no colo era seu intento.
Agarrando um rachão, à toa no soalho, perto do fogo, João Maria deu duas bordoadas no homem, que caiu.
Mal quis erguer-se, o menino acertou-lhe outra bordoada, desta vez com o olho da enxada. A feição de quem ia morrer, o andarilho esmoreceu.
Na cozinha, forte aroma de alho desprendia-se do caldo de feijão, a concorrer com o cheiro suave da salsa crespa que enfeitava a salada de tomate.
Certo de que tinha cumprido acabrunhante dever, o menino pegou as irmãs pelas mãos.
Puxou-as em demanda do terreiro.
Sob efeito da cena terrível, elas não falavam, olhos unidos no homem que jazia estatelado ao pé da cadeira.
A caminho do rancho do avô, no outro lado do rio, os fugitivos a cada passo voltavam as cabecinhas. E viam a porta entreaberta, a fumaça saindo pela chaminé. De gorro, protegendo-se da friagem, João Maria parecia mesmo um hominho.

Francisco Brito de Lacerda, advogado